Escreveu ontem o Ricardo na caixa de comentários deste post: “Não nos podemos é esquecer que ao mesmo tempo que acabamos com estas regalias injustas e de efeito cumulativo temos que fazer um esforço suplementar nas remunerações. Estes regimes apareceram porque nunca houve a coragem e a capacidade em aumentar condignamente as remunerações (…).” Concordo com o que diz — mas, chegadas as coisas ao ponto em que estão, afigura-se-nos que há questões adicionais que importa ter em conta, a primeira das quais é que os mais prejudicados, em comparação com as remunerações praticadas no sector privado, são as carreiras técnicas e os quadros dirigentes.
A última tentativa séria de dar alguma coerência e justiça às remunerações da função pública foi feita em 1989 (Decretos-Lei n.ºs 184/89 e 353-A/89, principalmente). O sistema então instituído visava, grosso modo, tipificar e normalizar as remunerações e proibir a atribuição de remunerações complementares. Mas, a breve trecho, o Novo Sistema Remuneratório (NSR) — a que um ministro das Finanças, por altura da guerra do Golfo, chamou de Novo “Scud” Remuneratório — começava a meter água por todos os lados.
O sistema de escalões criado veio a revelar-se muito mais oneroso do que o previsto, sobretudo em consequência da generalizada atribuição da classificação de serviço de Muito Bom. Esta classificação, juntamente com as promoções por mero decurso do tempo e sem dependência de vaga, o aumento do número de dias de férias, a aposentação praticamente livre decorridos 36 anos de serviço, a lassidão disciplinar, a acumulação, nalgumas categorias, de empregos públicos e privados praticamente sem restrições (sejam deontológicas, sejam de horário), o descontrolo na atribuição de ajudas de custo, o pagamento sistemático e regular de horas extraordinárias, entre outros benefícios ocultos, foram sendo utilizados como moeda de troca — implícita ou explícita — em relação à efectiva contenção de salários.
Há que ter em conta que este sistema pouco claro de retribuições pode convir a quase todos:
Convém aos sindicatos, porque lhes permite alimentar as ilusões dos funcionários públicos sobre a sua própria força — mantendo, deste modo, através do espectáculo anual montado aquando da discussão do Orçamento do Estado, os trabalhadores mobilizados, ou seja, sindicalizados e com as quotas em dia… Há que recordar, a este propósito, que, hoje em dia, o principal financiador da CGTP–Intersindical, passados os períodos áureos mas longínquos dos metalúrgicos e dos bancários, são os sindicatos da função pública e dos professores.
Convém também aos sucessivos ministros das Finanças, que apenas são responsáveis por disponibilizar os vencimentos, sendo que as restantes “alcavalas” correm por conta dos ministérios nos quais estão colocados os funcionários. E a percentagem de aumento salarial é a questão nuclear, porque, além do mais, dá às centrais patronais o referencial para o aumento dos trabalhadores por conta de outrem do sector privado...
Convém ainda aos trabalhadores menos qualificados da função pública, porque, através do modelo albanês patrocinado pelos sindicatos, vêem enormemente reduzidas as diferenças salariais entre o topo e a base.
Convém igualmente a certas categorias e sectores específicos, porque lhes permite o recurso a uma série de expedientes que compensa a perda de poder de compra. Os professores universitários estão a ficar mal pagos? Dá-se-lhes tempo para a elaboração de trabalhos para o sector privado (e público), permite-se a constituição de instituições dentro das universidades, em que os custos são, em grande parte, suportados pelas universidades, e os proveitos, através de determinados mecanismos, são distribuídos pelos docentes. Já não se podem aumentar os juízes sem furar o limite máximo fixado (vencimento do primeiro-ministro)? Aumentam-se as remunerações compensatórias, além de outros conhecidos subterfúgios. Os pilotos-aviadores ganham pouco em comparação com os valores de mercado da aviação civil? Recebem subsídios que quase duplicam o vencimento, independentemente de estarem sempre sentados a uma secretária…
Poderiam multiplicar-se os exemplos. A verdade é que está instituído um sistema injusto do estilo “salve-se quem puder”… que tem a vantagem acrescida de, por efeito da sua opacidade, levar a opinião pública a considerar que são regalias que estão atribuídas à generalidade dos funcionários públicos.
Vejam-se a este propósito os regimes especiais de aposentação que estes ou aqueles profissionais obtiveram, umas vezes conseguidas através de leis opacas que só os iniciados descobrem, outras vezes decorrentes de práticas administrativas intoleravelmente injustas.
Voltaremos a este assunto.
ADENDA – Não raras vezes, as discussões nas caixas de comentários são bem mais interessantes do que os posts aqui colocados. Sugere-se vivamente a leitura do comentário de Delfim Lourenço Mendes.
A última tentativa séria de dar alguma coerência e justiça às remunerações da função pública foi feita em 1989 (Decretos-Lei n.ºs 184/89 e 353-A/89, principalmente). O sistema então instituído visava, grosso modo, tipificar e normalizar as remunerações e proibir a atribuição de remunerações complementares. Mas, a breve trecho, o Novo Sistema Remuneratório (NSR) — a que um ministro das Finanças, por altura da guerra do Golfo, chamou de Novo “Scud” Remuneratório — começava a meter água por todos os lados.
O sistema de escalões criado veio a revelar-se muito mais oneroso do que o previsto, sobretudo em consequência da generalizada atribuição da classificação de serviço de Muito Bom. Esta classificação, juntamente com as promoções por mero decurso do tempo e sem dependência de vaga, o aumento do número de dias de férias, a aposentação praticamente livre decorridos 36 anos de serviço, a lassidão disciplinar, a acumulação, nalgumas categorias, de empregos públicos e privados praticamente sem restrições (sejam deontológicas, sejam de horário), o descontrolo na atribuição de ajudas de custo, o pagamento sistemático e regular de horas extraordinárias, entre outros benefícios ocultos, foram sendo utilizados como moeda de troca — implícita ou explícita — em relação à efectiva contenção de salários.
Há que ter em conta que este sistema pouco claro de retribuições pode convir a quase todos:
Convém aos sindicatos, porque lhes permite alimentar as ilusões dos funcionários públicos sobre a sua própria força — mantendo, deste modo, através do espectáculo anual montado aquando da discussão do Orçamento do Estado, os trabalhadores mobilizados, ou seja, sindicalizados e com as quotas em dia… Há que recordar, a este propósito, que, hoje em dia, o principal financiador da CGTP–Intersindical, passados os períodos áureos mas longínquos dos metalúrgicos e dos bancários, são os sindicatos da função pública e dos professores.
Convém também aos sucessivos ministros das Finanças, que apenas são responsáveis por disponibilizar os vencimentos, sendo que as restantes “alcavalas” correm por conta dos ministérios nos quais estão colocados os funcionários. E a percentagem de aumento salarial é a questão nuclear, porque, além do mais, dá às centrais patronais o referencial para o aumento dos trabalhadores por conta de outrem do sector privado...
Convém ainda aos trabalhadores menos qualificados da função pública, porque, através do modelo albanês patrocinado pelos sindicatos, vêem enormemente reduzidas as diferenças salariais entre o topo e a base.
Convém igualmente a certas categorias e sectores específicos, porque lhes permite o recurso a uma série de expedientes que compensa a perda de poder de compra. Os professores universitários estão a ficar mal pagos? Dá-se-lhes tempo para a elaboração de trabalhos para o sector privado (e público), permite-se a constituição de instituições dentro das universidades, em que os custos são, em grande parte, suportados pelas universidades, e os proveitos, através de determinados mecanismos, são distribuídos pelos docentes. Já não se podem aumentar os juízes sem furar o limite máximo fixado (vencimento do primeiro-ministro)? Aumentam-se as remunerações compensatórias, além de outros conhecidos subterfúgios. Os pilotos-aviadores ganham pouco em comparação com os valores de mercado da aviação civil? Recebem subsídios que quase duplicam o vencimento, independentemente de estarem sempre sentados a uma secretária…
Poderiam multiplicar-se os exemplos. A verdade é que está instituído um sistema injusto do estilo “salve-se quem puder”… que tem a vantagem acrescida de, por efeito da sua opacidade, levar a opinião pública a considerar que são regalias que estão atribuídas à generalidade dos funcionários públicos.
Vejam-se a este propósito os regimes especiais de aposentação que estes ou aqueles profissionais obtiveram, umas vezes conseguidas através de leis opacas que só os iniciados descobrem, outras vezes decorrentes de práticas administrativas intoleravelmente injustas.
Voltaremos a este assunto.
ADENDA – Não raras vezes, as discussões nas caixas de comentários são bem mais interessantes do que os posts aqui colocados. Sugere-se vivamente a leitura do comentário de Delfim Lourenço Mendes.
Ora até que enfim um artigo que versa sobre um problema real, e que tem sido debatido pelos cultores do Direito Administrativo. Parabéns ao Miguel Abrantes por ter colocado na "Câmara Corporativa" este tema e do modo como o colocou, sem demagogias. Gostaria de tecer algumas considerações acerca desta matéria. Com efeito, o sistema retributivo da função pública tem colocado muitos problemas e está em risco por causa da sua desconformidade ao principio constitucional da igualdade. São muitos os acórdãos, quer do Tribunal Constitucional, quer dos Tribunais Administrativos, que chamam a atenção para a desconformidade que existe entre o sistema retributivo, nalguns dos seus aspectos, e o principio da igualdade, chamando à colação o artigo 59º al. a) e artigo 13º da Constituição da República (CRP). O sistema retributivo não está construído em pirâmide. Vale dizer que funcionários de categoria inferior, por força da antiguidade, estão posicionados num escalão superior. O sistema permite que um funcionário numa categoria inferior ganhe mais, tenha uma remuneração superior em relação a outro funcionário que está posicionado numa categoria superior. Estas diferenciações não estão conformes com os parâmetros do artigo 169º nº 1, al. a). A diferença de remuneração não é justificada nem pela natureza, nem pela competitividade, nem pela qualidade do trabalho efectuado. Esta distinção também constitui um desvio ao principio do mérito. Estes desfasamentos, estas desigualdades, têm sido consideradas como contrárias aos principios da igualdade na retribuição.
ResponderEliminarAcontece que na passagem para um novo sistema retributivo deram-se situações em que pessoas, sendo mais antigas na categoria, ficaram a ganhar menos do que outras que tinham menor antiguidade na categoria e a diferenciação advinha de um marco temporal. A diferenciação não se apoiava na natureza, na qualidade de um determinado trabalho efectuado. Em 1989 há uma actualização dos índices salariais. Mais uma vez colocaram-se problemas de diferenciação insustentável que não tinham corpo nos critérios do artº 89, nº 1, al a) mas que basicamente tinham a ver com questões temporais.
Acresce referir que os Tribunais Administrativos têm chamado a atenção para a necessidade da Administração fazer uma aplicação das normas que acautele a equidade remuneratória , uma aplicação das normas que afaste situações em que uma pessoa mais antiga na categoria fique a ganhar menos do que uma pessoa que nessa mesma categoria tenha uma menor antiguidade.
A raiz do problema reside no facto das escalas salariais não estarem construídas em pirâmide. Veja-se a este propósito o Acordão de 20 de Março de 2003 do STA : O Tribunal considerou que as normas do DL 404-A/98, (designadamente estava em causa o nº 4 do artigo 21º), que conduzem a situações de desigualdade, devem ser interpretadas se necessário extensivamente no pleno respeito dos princípios gerais de coerência, igualdade e de equidade que presidem ao sistema das carreiras da função pública, obviando a que um funcionário em termos de escala indiciária possa ser ultrapassado por colegas da mesma categoria e de menor antiguidade (Acordão de 17 de Março de 2004 proferido no processo 1315 / 03).
A ideia é sempre a mesma face a este principio da igualdade -artigos 13º e 59º nº 1, al. a) da CRP: não pode admitir-se, por carência de justificação objectiva e racional, que funcionários da mesma categoria profissional que exerçam funções no mesmo serviço público, e sejam promovidos na mesma categoria, passem a auferir remunerações diferentes por efeito apenas do momento em que foram promovidos. Não será tolerável que seja auferida remuneração superior por funcionários com menor antiguidade na mesma categoria e idêntica qualificação. É que estas diferenciações em geral reportam-se sempre a duas situações. É uma situação que resulta de uma qualquer data, dum qualquer momento temporal ou então maior antiguidade na categoria. Maior antiguidade na categoria é pressuposto do principio do mérito. Significa que a pessoa foi promovida mais cedo.
Veja-se, também de 17 de Março de 2003, o Acórdão proferido no processo 1855/03. Também sobre o mesmo assunto. Acontece que estes defeitos do sistema retributivo geral se repercutiram nos sistemas retributivos das carreiras especiais e dos corpos especiais por reprodução deste modelo : no sistema retributivo dos enfermeiros, dos médicos.
Enfim, é verdadeiramente um sistema albanês que está construído, como diz Miguel Abrantes,no seio do qual não vale a pena ser competente, pois um trabalhador apenas com o antigo 5º ano do Liceu ganha tanto ou mais como um Técnico Superior da Administração Pública, que possui uma Licenciatura, uma Pós-Graduação ou um Mestrado!
Estupenda análise.
ResponderEliminarClap, clapa, clap!
ResponderEliminarIsento.
ResponderEliminarBRILHANTE análise.
ResponderEliminarPena é que remendar toda esta "manta de retalhos" não seja possível, sem uma alteração de Regime, ou seja de sistema constitucional! Desejamos é que a mesma seja feita em democracia.
Contudo, tenho ainda a impressão que todo este emaranhado resulta da falta de capacidade das élites governantes para visionarem com clareza, um modelo rigoroso. Isto é, não me parece que existem "cérebros" em Portugal, capazes de estabelecerem um novo sistema....
Viva,
ResponderEliminarO teu longo e (sempre) bem estruturado texto sobre as remunerações não foi ao encontro do que eu tinha defendido naquele comentário. O que fizeste foi descrever mais um regime complexo e "especial" de aumento das remunerações, o que é mais uma forma de negação da simplificação do sistema.
O que eu defendo é diferente. Defendo que os sucessivos ministros têm que ter a coragem de não empurrar para o seu sucessor regalias que visam compensar aumentos menores no imediato das remunerações. Defendo que as remunerações devem ser a base da contrapartida do trabalho com o critério do mérito e da função desempenhada como barómetro para o seu valor. O resto das regalias deve ser simplificada e não deve ser a cãmara de compensação da falta de coragem dos políticos que adoram fazer fuga para a frente. Em resumo acho que é justo combater as regalias com efeitos cumulativos mas que também é justo remunerar bem quem trabalha bem na função pública, de forma simplificada.
Abraço e mais uma vez parabéns pelo blogue,
É bom ler-vos.
ResponderEliminarInês
Completamente de acordo com o comentário de Delfim.
ResponderEliminarAgora algumas perguntas que devem ser proferidas
Face ao exposto porque será que o Provedor de Justiça não age em conformidade? O que anda ele a fazer? O que está à espera para actuar?
Face ao exposto porque será que a Procuradoria Geral da Republica não age em defesa da legalidade?
Face ao exposto, quando termos uma reacção, activa, positiva e tendente a contribuir para a mudança de mentalidades e de situação, da parte dos grupos da "sociedade civil" que reivindicam o interesse nacional, como seja o Missão Portugal, sobre este assunto?
Já reparou como os silêncios podem ser ensurdecedores?
Caro Anonymous das 10:39 AM, Setembro 26, 2005: tem toda a razão. Mas, com efeito, parece que existe um torpor que paralisa a acção. Os vícios são patentes; a correcção dos mesmos fácil; o facto é que, certamente devido aos diversos "interesses" em presença, os mesmos não se corrigem, e assim vamos alegremente andando até á desmotivação final!
ResponderEliminarEste comentário foi removido por um gestor do blogue.
ResponderEliminarCaro Delfim Mendes
ResponderEliminarNão creio, há um momento em que tem de parar. Desde o governo de António Guteres (AG) que se iniciou o processo degenerativo, porque a liderança desapareceu. Serve interesses inconfessados e menos confessados, não admira que a única não existente candidatura presidencial suscite tanta celeuma, mas existe sempre um limite admitido pela sociedade. Acho que estamos a chegar a esse limiar, prenuncio de mudanças significativas. Até agora estavamos numa situação de caos desejado, vamos passar para uma fase de organização querida, é isto que diferencia o primeiro mundo dos outros....
Note que esta sociedade tem os mecanismos de salvaguarda, falta o cumprimento da sua tarefa, ou seja estamos em caos desejado, vamos passar para organização querida,logo que começarmos, cada um, a cumprir o seu dever.
Anónimo das 10.39 da manhã
Porque é que o Público ou o Diário de Notícias não publicam este post? Está a léguas das porcarias que lá aparecem como opiniões válidas.
ResponderEliminar