quarta-feira, junho 28, 2006

A Revolta das Relações [3]

Os juízes desembargadores “deslegislam”

    'Mas o pior estava para vir. Há quem veja no poder de julgar com inteira liberdade as controvérsias de facto, isento de escrutínio ou sindicância, limitado apenas pela sua consciência, a pedra de toque do poder, da independência e da autoridade do juiz, sintetizada neste sugestivo mote: o juiz é soberano em matéria de facto. Para esta ideia autocrática da justiça e do juiz, com adeptos fortes nos tribunais superiores (e na direcção da associação sindical dos juízes), a reforma de 95, ao admitir que o juízo sobre os factos seja passível de impugnação e controlo, representa uma intolerável desautorização do juiz. A esta rejeição ideológica, somou-se a rejeição pelos desembargadores da especialização da Relação como 2.ª instância de reapreciação da matéria de facto decidida na 1.ª instância. Confesso que o motivo disto me escapa. A Relação vivia numa penumbra entre dois focos. A questão de facto era arrumada na 1.ª instância. Na questão de direito, era preponderante o Supremo. A reforma de 95 dá à Relação a oportunidade de fazer a diferença, em terreno vedado ao Supremo: inspirar um modelo inteligente e competente de julgar as controvérsias de facto. E a Relação só pensa em reverter à condição anterior! Não entendo.

    Mas já posso explicar o que é a “rebeldia” das relações a que aludiu o conselheiro Simas Santos. A abrir, é uma proclamação de objecção de consciência a controlar a decisão do juiz de 1.ª instância, servida por uma linha de pensamento de fabrico próprio, indefensável e ptolomaica, nascida para servir o juiz e o desembargador, não para servir a justiça, adoptada por todas as Relações a uma velocidade inédita na formação duma jurisprudência, e sobranceiramente reiterada a cada acórdão, não obstante os avisos que vão surgindo de que aquilo rasga mais de 100 anos de estudos jurídicos.

    A fechar, a “rebeldia” tem vindo a anular um regime legal com uma orientação dita jurisprudencial, criando uma caricatura de jurisprudência para tornar a lei inoperante. Chacina sistematicamente os recursos sobre a matéria de facto que lhe saem ao caminho, restaurando o regime anterior à reforma como aquele que realmente está em vigor. Remetendo aos advogados acórdãos deliberada e ostensivamente punitivos do acto de recorrer sobre a matéria de facto, está a caminho de levar a cabo o genocídio de uma categoria de recursos, e de exonerar as Relações, por acto de vontade própria, de uma função que lhes é cometida por lei, a de “verdadeira 2.ª instância”.

    Em resultado de tudo isto, a justiça cível piorou nos últimos anos: há hoje mais erros judiciários do que dantes, e sobretudo mais casos de juízos abertamente divorciados da razão e inquinados por parcialidade evidente (o que era muito raro com o colectivo), e que a Relação faz questão de confirmar com muita honra e discurso de louvor e desagravo do juiz recorrido. Engana-se pois o dr. Silva Leal, ao temer um retrocesso. Já é um facto consumado. Os desembargadores que tem ouvido apenas pretendem do Ministério da Justiça a certidão de óbito da espécie de recursos que vêm matando sem descanso. A consagração legal do poder que se atribuem de deslegislar o que não é do seu agrado nas leis do processo. Por mim, nem sei que dizer perante o arrojo triunfante disto. Pergunto-me de onde veio e como se instalou, e a resposta não condena apenas os seus autores. Condena todos os homens de leis, por termos deixado cair um manto de silêncio, tão raramente rompido, sobre tão grave desafio ao direito.'

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