sábado, novembro 14, 2009

Leituras

• Pedro Adão e Silva, Sabemos como começa:
    Primeiro aceitamos que a investigação criminal vá assentando cada vez mais em escutas, e aparentemente quase só em escutas; depois toleramos que o seu conteúdo seja plantado na comunicação social; por fim discutimos o teor do que não deveria existir, sem que questionemos o modo com estamos colectivamente a deixar que se minem os alicerces do Estado de direito. Como se não bastasse, admitimos com normalidade que um titular de um órgão de soberania seja, em última análise, alvo de espionagem política durante uns meses. Para culminar, parece ter chegado o dia em que os deputados se juntarão para aprovar uma lei que obrigará de facto o suspeito de um crime a provar a sua inocência, em lugar de obrigar a acusação a provar a sua culpa. Pelo caminho deitámos fora princípios sacrossantos para uma vida em comum numa sociedade decente: o direito à privacidade e a importância das garantias consagradas no processo penal, designadamente a presunção de inocência. Agora toca a quem ocupa transitoriamente o cargo de primeiro-ministro, mas, se não somos intransigentes neste caso, haverá um dia em que poderá passar-se connosco. E nesse dia não teremos a lei do nosso lado, e já não haverá Estado de direito para nos defender.

    A tudo isto se chama recuo civilizacional. Sabemos, na verdade, como começa, mas temo que saibamos também como vai acabar. Até certa fase podemos ir resistindo, com mais ou menos energia, mas chegará um momento em que teremos de viver recatadamente com a derrota.

4 comentários :

  1. Primeiro levaram os comunistas,
    Mas eu não me importei
    Porque não era nada comigo.
    Em seguida levaram alguns operários,
    Mas a mim não me afectou
    Porque eu não sou operário.
    Depois prenderam os sindicalistas,
    Mas eu não me incomodei
    Porque nunca fui sindicalista.
    Logo a seguir chegou a vez
    De alguns padres, mas como
    Nunca fui religioso, também não liguei.
    Agora levaram-me a mim
    E quando percebi,
    Já era tarde.

    Bertolt Brecht

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  2. Quando eles vieram à noite para levarem os comunistas,não me importei,não sou comunista.Depois levaram os homossexuais,não me importei,não sou homossexual.Depois levaram os pobres,não me importei, felismente tenho algum dinheiro.Ontem,vieram buscar os padres.Não me importei,não sou padre.Quando vierem hoje,quem irão eles levar?

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  3. Excelente artigo do qual cumungo inteiramente.

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  4. Em resposta à falta de entendimento dos meandros do fenómeno por parte de suas senhorias, os quais pensam que a sua pseudo-intelectualidade dá resposta a tudo, aqui deixo um texto de Helena Garrido, escrita esta semana no Jornal de Negócios:

    Imagine-se, por uns minutos, que os processos "Portucale", "Freeport", "Furacão", "Submarinos", "BCP", "BPN"... estavam concluídos. Julgados e com condenados. Estaríamos agora a viver e a avaliar o caso "Face Oculta" da mesma maneira? Existiriam as fugas de informação a que assistimos?

    Claro que não. Temos um passado de justiça marcado por processos intermináveis que, quando concluídos, acabam em condenações perdidas em recursos e prescrições ou com penas sobre aqueles que sempre surgiram como os elos mais frágeis e menos prósperos.

    O conhecimento do que se passa noutros países, dos Estados Unidos aos nossos vizinhos espanhóis, agrava ainda mais essa avaliação de uma justiça injusta.

    Quanto mais paralisada vai ficando a justiça, maior tem de ser a revolta de todos os homens e mulheres de bem que, todos os dias, defendem a justiça, os polícias, os procuradores, os juízes e até os advogados.

    Na população em geral, que somos nós, alimenta-se a apatia, o "encolher de ombros" com um violento incentivo ao "safe-se quem puder e sem olhar a meios".

    Enquanto isto vai acontecendo, os socialistas e alguns protagonistas da justiça escolhem o erro de se preocuparem apenas com as fugas de informação, as violações ao segredo de justiça e a voracidade dos media. Não compreendem que as "notícias" são cada vez mais o escape de uma máquina em ebulição. Não percebem que acabam por ser estas notícias que, infelizmente, transmitem um sentimento mínimo de justiça.

    Os "julgamentos populares e sumários" a que, na prática, estamos a assistir tenderão a ser cada vez mais e mais violentos. O sistema está a reagir, em busca de justiça, e usa o novo meio de "justiça popular", que já não é o pelourinho mas a página no jornal, a peça na televisão, na rádio ou na Internet.

    Não vale a pena gritar contra a violação do segredo de justiça ou contra a voracidade dos media. Vale sim a pena perguntar porque se violam esses segredos. E porque se queixam alguns da violação desses segredos que por vezes servem mais para proteger pessoas do que a investigação.

    O processo "Face Oculta", do que dele se conhece, já é tenebroso. A Polícia Judiciária e o Procurador responsável pelo caso merecem o nosso agradecimento pela coragem que têm revelado. Sim, é verdade que estão a cumprir a sua obrigação. Mas sabemos, pela experiência de outros, que cumprir a obrigação pode ter um preço elevado nas suas vidas.

    O horror que o caso revelou completa-se em terror quando o Procurador-Geral da República e o presidente do Supremo Tribunal de Justiça são envolvidos na rede do caso por terem na sua posse escutas que envolvem o primeiro--ministro, há cerca de três meses. Um terror que se justifica por verificarmos que não conseguem transmitir-nos uma mensagem que nos leve a acreditar que a decisão será tomada com o olhar vendado da imagem da justiça.

    Estamos a chegar a um ponto demasiado perigoso. Se queremos acabar com os julgamentos populares, se queremos combater as violações do segredo de justiça e se queremos ser justos com as figuras públicas, pondo fim às suspeições que sobres elas se vão acumulando, temos de ter justiça. Mais e mais injustiça feita de julgamentos populares sumários é a alternativa. A escolha é dos políticos.

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