- ‘Numa entrevista recente, perguntaram-me se, caso a atual solução de Governo minoritário não chegasse ao fim da legislatura, poderia haver lugar para um "Governo de iniciativa presidencial". Respondi que uma tal solução não faz hoje nenhum sentido. Eis as razões para a minha resposta.
Antes de mais, importa esclarecer que a referida noção remete para os três governos nomeados sucessivamente em 1978-79, na primeira legislatura da atual era constitucional, pelo então Presidente da República, Ramalho Eanes, depois da queda dos dois primeiros governos constitucionais, ambos chefiados por Mário Soares, sendo o primeiro um Governo minoritário do PS (que tinha ganho as primeiras eleições parlamentares sem maioria absoluta) e o segundo um Governo de coligação com o CDS, então presidido por Freitas do Amaral. Aqueles governos foram constituídos à margem do quadro partidário, sendo chefiados por personalidades independentes, tal como a maior parte dos seus membros.
Como se sabe, além de efémera, não se tratou de uma experiência propriamente bem-sucedida. O primeiro desses governos, chefiado por Nobre da Costa, não chegou a entrar em funções, por ter sido rejeitado logo na sua apresentação na Assembleia da República. O segundo Governo, chefiado por Mota Pinto (que tinha deixado o PPD, a que mais tarde regressaria), viu-se obrigado a pedir a demissão pouco tempo depois de iniciadas as funções, por ter sido rejeitada a sua proposta de orçamento. Por último, o Governo de Maria de Lurdes Pintasilgo já foi constituído como explícita solução transitória, até à realização de eleições antecipadas, que vieram a ter lugar no final de 1979, de onde resultou a vitória da Aliança Democrática, um coligação criada pelo PPD/PSD e pelo CDS, sob a liderança de Sá Carneiro.
Para além da anomalia da sua génese política, os governos presidenciais revelaram-se um verdadeiro fracasso político, tendo ficado como símbolo de um período de grande instabilidade política (cinco governos em três anos) na fase incipiente da nossa democracia constitucional. Só nas condições políticas da época é que se podem compreender as razões que levaram à adoção daquela solução governativa por parte do Presidente Eanes em 1978. Primeiro, era convicção fundada que novas eleições não alterariam substancialmente o contexto parlamentar existente, sem proporcionar soluções de Governo estáveis. Segundo, de acordo com uma norma constitucional transitória, o parlamento que resultasse de novas eleições estaria limitado a cumprir o mandato do anterior, até 1980, pelo que parecia conveniente evitar uma tal solução necessariamente transitória. Terceiro, ganhava fôlego nessa época uma tendência presidencialista, que reivindicava maior protagonismo para Belém na esfera governativa, a que não era alheio o facto de a versão originária da Constituição atribuir ao Presidente poderes de intervenção bem fortes (incluindo o de demitir livremente o Governo), no quadro de um sistema semipresidencialista de dupla responsabilidade política do Governo, simultaneamente perante o Parlamento e o Presidente da República.
Todavia, o rotundo insucesso dessa fórmula de Governo mostrou que não há soluções governativas fora do parlamento. Afinal, a questão política que a seu tempo a iniciativa de governos presidenciais tentou resolver só encontrou solução com a realização de eleições antecipadas. Embora evocada de quando em vez, aquela solução não voltou a ser ensaiada. E com toda a razão. Para além do falhanço da experiência política, alteraram-se também os dados que a tornaram possível há trinta anos.
A primeira grande alteração foi a consolidação entre nós de uma democracia de tipo parlamentai", necessariamente assente em governos de base partidária, como resultado de eleições parlamentares. Estas tornaram-se incontornavelmente no mecanismo pelo qual os cidadãos escolhem o Governo. A segunda grande alteração, que é concomitante com a primeira, está na definitiva configuração do papel do Presidente da República como "quarto poder", com funções de supervisão e moderação do funcionamento do sistema político, onde não cabe em princípio a competência de fazer e sustentar governos à margem do quadro parlamentar e partidário. Constitucionalmente falando, a grande divisória foi a revisão constitucional de 1982, que pôs fim ao período constitucional transitório que a versão originaria da Constituição previa, e que aproveitou para confinar os poderes políticos do Presidente da República, abandonando o referido regime de dupla responsabilidade governamental, tornando os governos exclusivamente dependentes da confiança política do parlamento. Desnecessário será dizer que essa mudança constitucional foi claramente uma reacção dos partidos políticos às veleidades presidencialistas do período transitório, entres as quais se contam os governos de iniciativa presidencial.
Sem excluir de todo a eventualidade de uma solução de Governo sem base partidária, a título excecional, em condições de anormalidade política, a verdade é que numa democracia parlamentar madura, como é a nossa, as soluções de Governo devem ser encontradas no quadro partidário decorrente das eleições parlamentares e da composição parlamentar. Se um Governo saído de eleições não chegar ao fim do mandato e se não houver condições políticas para diferente fórmula governativa no panorama parlamentar existente, a solução só pode ser a convocação de novas eleições, antecipando o fim dessa legislatura. É para isso que existe o poder de dissolução parlamentar, que não pode ser um exercício de caprichismo presidencial, visando sim proporcionar soluções de Governo quando elas faltam.’
Sem comentários :
Enviar um comentário