quinta-feira, fevereiro 02, 2012

Ainda sobre a cerimónia de abertura do ano judicial

Não me lembro de outra cerimónia de abertura do ano judicial em que o Governo tenha ficado tão isolado perante a crítica implacável de altas figuras da hierarquia do Estado. Só o propósito de desvalorizar tudo o que ali foi dito pode levar a que se diga, como o fizeram os blogues e comentadores de direita, que se tratou de uma cerimónia insípida para cumprir um ritual.

Com efeito, para além da arrasadora intervenção do bastonário da Ordem dos Advogados, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, a quarta figura da hierarquia do Estado, questionou sem contemplações a política de esbulho do Governo:
    ‘Por último e para terminar, a questão dos "direitos adquiridos" que renasce como a Hidra sempre que entramos em crise económica ou social.

    E a sentença dos comentaristas é quase sempre unânime: em época difícil não há direitos adquiridos, o que quer dizer que se pode atingir, ou seja, baixar, sem limites definidos, as pensões de reforma fixadas, os vencimentos ou salários estabilizados e as prestações acordadas.

    Não se nega que em situações excecionais possa haver soluções excecionais, mas com limites definidos, à semelhança do que sucedeu no fim da 1.ª grande guerra quando surgiu a teoria da imprevisão abrindo brecha no princípio da estabilidade contratual; mas o curioso na opinião daqueles comentaristas é o unilateralismo do seu raciocínio incapaz de perceber os efeitos jurídicos bilaterais que ele contém e que, de certeza, muita gente recusará.

    Os direitos são ou originários ou adquiridos.

    Originários são praticamente tão-só os direitos de personalidade, entre os quais se contêm os direitos potestativos de aquisição de futuros direitos adquiridos; adquiridos são todos os outros.

    Vale isto por dizer que direitos adquiridos não são apenas aqueles de que se fala em épocas de crise, isto é, as pensões fixadas, os salários estabilizados e as prestações acordadas; são também os direitos obrigacionais dos credores, os direitos de propriedade e os direitos societários dos sócios dominantes ou não.

    Defender que não há direitos adquiridos é dizer que todos eles, mas todos, podem ser atingidos, diminuídos ou, no limite, eliminados; ou seja, é admitir o regresso ao tempo das ocupações, das autogestões ou do confisco porque estamos perante direitos adquiridos alteráveis perante situações excecionais.

    Será que se está preparado para aceitar todas, mas todas, as sequelas lógico-jurídicas de quem assim pensa?

    Os direitos adquiridos são o produto final de uma civilização avançada que se estruturou à volta da teoria do pacto ou do contrato social que, desde o séc. XVII foi sendo elaborada por pensadores diversos desde Hobbes, Francisco Suarez, Locke, até à obra conhecida de Rousseau, que fundamentou a legitimidade do poder no pacto social que os cidadãos aceitavam delegando o seu exercício e retirando, assim, ao príncipe a titularidade originária daquele.

    A evolução posterior desta teoria levou à conceção da soberania popular delegada pelo povo nos seus representantes eleitos, isto é, levou à democracia representativa; mas, nela, permanece a noção subliminar do contrato tacitamente aceite pelo povo e que contem em si, também, a ideia de solidariedade entre os cidadãos que contratualizaram o pacto.

    Quando o contrato se rompe, rompe-se também a solidariedade, porque tal rutura traz sempre consigo a violação do equilíbrio das prestações contratuais com o benefício de uns em detrimento de outros.’

O próprio procurador-geral da República não se esquivou a denunciar as campanhas sujas a que a direita recorreu para se alçar ao poder e as intromissões na esfera judicial:
    ‘O maior problema que a justiça em Portugal atravessa é, na minha opinião, e como já repetidamente tenho afirmado, a ligação entre política e justiça.

    Desde logo pela tendência em resolver problemas políticos através de processos judiciais. A partir do “25 de Abril” a maioria dos políticos relevantes do nosso país passou pela Procuradoria-Geral da República e sem que isso se justificasse, como os tribunais vieram a confirmar posteriormente. Pergunta-se: culpa dos tribunais nestes trinta e sete anos de democracia? Não, culpa de quem quer resolver os problemas políticos em sede que não é a própria.

    A separação dos poderes e o rigoroso respeito de cada um deles pelos outros é um dos pilares essenciais da democracia.

    As intromissões levarão a uma subversão de valores democráticos há muito consagrados e a uma regressão no tempo, que não se deseja.

    É preciso dar à política o que é da política e aos tribunais o que é dos tribunais. (…)’

Como se isto não bastasse, o Presidente da República, perante o voluntarismo populista da ministra da Justiça, que vem bailando ao ritmo das manchetes do Correio da Manha e do Sol, fez um apelo à “participação de todos” ou, por outras palavras, a um pacto na área da justiça, pacto esse que existia e foi rasgado pelo PSD:
    ‘O impulso das reformas na área da Justiça partirá, naturalmente, dos decisores políticos, num trabalho de estreita colaboração entre a Assembleia da República e o Governo, que, como Presidente da República, irei acompanhar atentamente e ao qual darei toda a minha cooperação.

    Trata-se de um processo que exige a participação de todos, dos responsáveis políticos e institucionais e dos agentes da justiça, num clima de apaziguamento, de diálogo e de colaboração construtivos, para que se possa aprovar um quadro de soluções que, respondendo aos compromissos assumidos, contribua para uma melhoria efetiva e real do nosso sistema de justiça.’

Acham mesmo que a cerimónia de abertura do ano judicial foi igual a tantas outras?

4 comentários :

  1. A contundencia dos discursos foi exactamente a mesma dos discursos de cavaco após ter ganho eleições.
    A diferença é que, ao contrário dos discursos de cavaco, estes não interessam á comunicação social.

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  2. Excelente texto de análise e filosofia políticas.

    Que alguns jornais peguem nele e o publiquem.

    Que os responsáveis das secções e concelhias do PS o leiam a abrir as suas reuniões e afixem nas respectivas sedes.

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  3. Já agora o Marinho Pinto é candidato a alguma coisa é que quem o ouve falar pensa estar a ouvir o leader da oposição, mas claro ouvi dizer que dá muito trabalho sujeitar-se ir a eleições e acusar sem provas esse sr devia saber pela profissão que desempenha que não é muito legal é que geralmente quando acusa a questão que lhe é colocada é sempre a mesma "quem são os acusados" e a resposta é sempre "os investigadores que façam o trabalho deles", enfim farto de fogo de artificio estou eu especialmente depois de 6 anos de "show off" socretino diário.

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  4. Não será candidato ainda, mas pode muito bem vir a sê-lo.


    Claro, depois de seis anos de sofrimento diário, está à vista que este cenário seria para alguns um verdadeiro PESADELO!


    Estás farto, imbecil e não só cretino? Faz-nos um favor e EMIGRA!

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