sábado, julho 28, 2012

‘Em Passos Coelho não há pessoas e quando as há estão do lado do mal, são "ruído"’

• José Pacheco Pereira, Encostados a um canto [hoje no Público]:
    ‘É na pedrada na rua que se vê a raiva? Não, não é. Não olhem para a raiva de baixo, olham para a raiva de cima. É que não são só os de baixo que percebem que estão a ficar encostados a um canto, são também os de cima. Os de cima já perceberam que os melhores tempos já estão no passado, que o Governo já está mais estragado e hesitante do que o que eles desejavam, que já não está intacto e forte, mas que uma mistura de Relvas, mais o défice incontrolado, mais, espantem-se, a proximidade de eleições, está a dar second thoughts àqueles que queriam apenas como "bons alunos" e executores. O magma da "política", que os de cima tanto desprezam, começa a vir à superfície e será o "ruído" que não desejam. Ou, como diz o FMI de forma certeira, há "fadiga do ajustamento". E os de cima pensam que ainda está muita coisa para fazer, para agora já lhes começarem a dizer que se chegou ao limite. Começam a ter a sensação de que foi uma oportunidade única, ainda é uma oportunidade única, mas que está a acabar, começa a faltar o espaço. O canto começa a ficar apertado. Daí a raiva crescente.

    É quando Pedro Ferraz da Costa diz, com aquele ar perpetuamente zangado e enjoado com o mundo, que é preciso acabar com 100.000 ou 200.000 empregos na função pública, sem problema nenhum, porque o Estado vai continuar a funcionar na mesma. É que não é análise, é desejo. É quando se defende um mundo que funcione para as "empresas" - uma abstracção funcional porque o que eles querem dizer é outra coisa - sem ter que emperrar porque há leis, direito e direitos, instituições e eleições, interesses outros que não os das classes "certas". Quando esse discurso, bruto e sem ambiguidades, veio ao de cima com a decisão do Tribunal Constitucional, percebemos bem a raiva.

    No meio disto tudo, Passos Coelho fornece outro produto, mais à sua dimensão de executante, mas que também transporta alguma desta raiva. É quando Passos Coelho diz que "não estamos a exigir de mais", como se fosse pouco o que se está a "exigir" e ainda não levaram em cima com a dose toda. É quando avança com mais uma comparação moral que mostra o imaginário onde estamos metidos; não podemos correr o risco de nos cruzar com os nossos credores "nos bons restaurantes e boas lojas". É mesmo isso que os portugueses andaram a fazer nos últimos anos, a comprar malas Vuitton e sapatos Jimmy Choo!

    Passos dizia que as pessoas "simples" percebiam isto, porque de facto para ele as coisas são assim simples. Então como é que nos devemos "cruzar com os nossos credores"? De alpergatas, vestidos de chita, trabalhando dez horas por um salário de miséria? É que não é preciso andar muito tempo para trás para ter sido assim. Ainda há quem se lembre. Deve ser por isso que é preciso "ajustar".

    O papel destas ideias, elas sim "simples" no sentido bíblico, é que são aquilo que está metido dentro da cabeça do discurso do poder actual, mais por parte dos executantes do que dos mandantes. O teatro do poder actual é composto por poucas personagens a preto e branco: os credores, os devedores, os empreendedores, os "não competitivos", os que "vivem acima das suas posses" e os "ajustados", os "alavancados" e os "desalavancados", os "piegas" preguiçosos e os bons alunos que fazem o "trabalho de casa" e não querem ter direitos, os "pacientes" e as "baratas tontas". Não é um mundo muito complicado, é até assustadoramente simples, mas assusta saber que é este teatro de sombras que move o discurso do primeiro-ministro. Nele não há pessoas e quando as há estão do lado do mal, são "ruído", são não-económicas na sua essência.

    Para alguns, falar dos de cima e dos de baixo, é marxismo. Coitados, sabem bem pouco o que é o marxismo, para sequer perceberem que Marx escreveu toda a sua obra para explicar que não era "científico" falar assim dos conflitos sociais. Não, não é marxismo, nem pcpismo, nem bloquismo, é apenas repetir a mais velha percepção de que os conflitos sociais de sempre se fazem entre quem ganha e quem perde, quem é mandado e quem manda, entre quem tem e quem não tem. Vem em Aristóteles e vem em Aristófanes, a sério e a gozar.’

3 comentários :

  1. Em primeiro lugar, sejam benvindos que muita falta fizeram.

    Em segundo lugar, fantástico texto do Pacheco Pereira. Por muito que possa ter algo escondido, agendas e coisas do género, é exemplar na demonstração de que estas políticas servem basicamente a muito poucos em desfavor de muitos, imensos.

    Uma boa base para aqueles que foram divididos para melhor (outro) reinar percebam que só unidos os cidadãos vencerão.

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  2. Fiz dezenas de visitas diárias, que nunca lamentei e sempre aproveitei, "reencaminhado" para outros blogs bem interessantes. Foi um óptimo serviço prestado pelo CC.
    Saúdo agora o regresso, que espero duradouro e frutuoso como sempre.
    O artigo do Pacheco Pereira sugere-me comentar dois aspectos da "raiva" a que se refere, um dos "de cima", outro dos "de baixo".
    Os primeiros, estão bem retratados nas declarações dos presidentes do BPI e do BCP, dois verdadeiros "democratas" para com os seus umbigos, que ao apresentarem os péssimos resultados dos seus bancos, aproveitaram para desviar as atenções e virar a sua raiva contra o Tribunal Constitucional, sugerindo mesmo a revisão da Constituição. É desejo já ouvido várias vezes, de outros sectores, e parece mesmo movimento bem coordenado..
    Será que têm medo que o governo lhes retire o equivalente um subsídio dos seus parcos rendimentos, e enfurecem-se contra o "ricalhaço" funcionário público com 1.000 euros mensais, cujo milionário salário deve justificar o corte dos dois subsídios?!
    Mas estes senhores não têm coragem de se insrgir, por exemplo, contra o TC alemão, que tem competência para intervir a propósito de tudo e de nada o que se refere às intervenções da Alemanha na resolução dos problemas da zona Euro.
    Quanto à raiva dos "de baixo", pode ser que ela comece verdadeiramente a sentir-se, quando os funcionários públicos virem reposta a situação vigente no tempo do fascismo, e agora defendida pelo governo, segundo as noticias de hoje - mais segurança no emprego e melhor sistema de saúde exigem salários mais baixos (e já agora também extinção da ADSE)!
    Um retrocesso de mais de 50 anos que deverá desencadear uma verdadeira raiva de toda a função pública!

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  3. É espantosa a raiva dos de cima para com um povo inteiro. Como se nunca tivessem aceite que não são especiais, que não mereceram o direito a ser preveligiados só porque nasceram com uma conta bancária bem forrada e um paizinho com uma fabriqueta onde explorava dezenas de trabalhadores.
    É gente com esta mentalidade que deixamos inundar o sistema politico, gente verdadeiramente convencida que pertencem a uma casta diferente, melhor, mais merecedora.
    Mas o merecimento ganha-se, não se herda nem se obtem por decreto.
    É incrivel como aqueles que votaram nestes desgraçados não perceberam o que queriam quem os apoiava por trás. Bastava ter estado atento, meus amigos. Soares dos Santos, Belmiros, banca, seguros, empresários e gestores de empresas que não sabem conviver com a concorrencia...estavam á espera de que?!Que anjinhos meu deus, que anjinhos...

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