sábado, fevereiro 28, 2015

O ESTADO DO ESTADO DE DIREITO

Miguel Sousa Tavares, O ESTADO DO ESTADO DE DIREITO [hoje no Expresso]:
    «(…) Três meses depois, o meu ponto de partida é o mesmo de então: não sei, não faço ideia e não tenho maneira de saber se as gravíssimas acusações que pendem sobre José Sócrates são verdadeiras ou falsas. Mas não é isso que está em causa agora: eu não faço a defesa de José Sócrates, faço a análise sobre as circunstâncias da sua prisão preventiva e de tudo o que tem acontecido à volta dela. Não é a inocência ou a culpabilidade de José Sócrates — que só se apurará em julgamento — que agora interessa: é o funcionamento do Estado de direito. E isso não é coisa pouca.

    Creio que uma imensa maioria dos portugueses julgará, nesta altura, que José Sócrates está muito bem preso. E por três ordens de razões diversas: uns, porque abominam politicamente Sócrates e acreditam que foi ele sozinho que criou 170 mil milhões de dívida pública (hoje, 210 mil milhões), assim conduzindo o país à ruína; outros, porque acreditam que o "Correio da Manhã", o "Sol" ou o "i" são uma fonte credível de informação e, portanto, já nem precisam de julgamento algum em tribunal, porque a sentença já está dada; e outros, porque, mesmo não emprenhando pelos ouvidos dos pasquins ao serviço da acusação, acreditam mesmo na culpabilidade de Sócrates e, por isso, a sua prisão preventiva parece-lhes aceitável.

    Porém, nenhum destes três grupos tem razão: o primeiro, porque confunde um julgamento político com um julgamento penal, assim fazendo de Sócrates um preso político; o segundo, porque prescinde de um princípio básico de qualquer sistema de justiça, que é o do contraditório e do direito à defesa do acusado: basta-lhes a tese da acusação para se darem por elucidados e satisfeitos; e o terceiro, porque ignora a diferença fundamental entre a fase de inquérito processual e a fase de julgamento. O erro destes últimos (que são os únicos sérios na sua apreciação) é esquecer que a presunção ou convicção de culpabilidade do arguido por parte do juiz de instrução, as suspeitas, os indícios ou as provas que o processo possa conter, não servem de fundamento à prisão preventiva. Se assim fosse, a fase de inquérito seria um pré-julgamento, com uma pré-sentença e uma pena anterior à condenação em julgamento: a pena de prisão preventiva. Que é coisa que a lei não prevê nem consente e que, a meu ver, é aquilo que o juiz Carlos Alexandre aplicou a José Sócrates e a Carlos Santos Silva.

    A lei consente apenas quatro casos em que o juiz de instrução pode decretar a prisão preventiva de um arguido: a destruição de provas, a perturbação do processo, o perigo de fuga ou o alarme social causado pela permanência em liberdade. Sendo esta a medida preventiva mais grave e de carácter absolutamente excepcional (visto que se está a enfiar na prisão quem ainda não foi julgado e pode muito bem estar inocente), a liberdade de decisão do juiz está taxativamente limitada a estas quatro situações e nada mais.

    Não interessa rigorosamente nada que o juiz possa estar absolutamente convencido da culpabilidade do arguido: ou existe alguma daquelas quatro situações ou a prisão preventiva é ilegal. (E convém recordar que, ao contrário daquilo que as pessoas foram levadas a crer, o juiz de instrução não é parte acusatória, mas sim equidistante entre as partes: cabe-lhe zelar tanto pela funcionalidade da acusação como pelos direitos do arguido).

    A esta luz, é difícil ou impossível enxergar em qual dos quatros fundamentos se abrigará Carlos Alexandre para manter Sócrates e Santos Silva em prisão preventiva. O perigo de destruição de provas é insustentável, depois de revistadas as casas dos arguidos, apreendidos os computadores, escutadas as chamadas telefónicas durante mais de um ano. O perigo de perturbação do processo ("fabricando contratos", como foi veiculado para a imprensa) tanto pode ser consumado em casa como na prisão, através do advogado ou por outros meios. O perigo de fuga, para quem se entregou voluntariamente à prisão, tem o passaporte apreendido e pode ser mantido sob vigilância visual e de pulseira electrónica em casa, só pode ser invocado de má fé. E o alarme social, só se for nas páginas do "Correio da Manhã". A avaliar por aquilo que nos tem sido gentilmente divulgado, o dr. Carlos Alexandre não tem uma razão válida para manter os arguidos em prisão preventiva. E mais arrepiante tudo fica quando se torna evidente que o motorista de Sócrates só foi preso para ver se falava, e foi solto, ou porque disse o que o MP queria (verdadeiro ou falso) ou porque perceberam que não tinha nada para dizer. Ou quando a SIC, citando fontes do processo, nos conta que uma das razões para que a prisão preventiva de Carlos Silva fosse prorrogada por mais três meses foi o facto de ele não ter prestado quaisquer declarações quando chamado a segundo interrogatório por Rosário Teixeira. Se isto é verdade, quer dizer que estes presos preventivos não o foram apenas para facilitar a investigação (o que já seria grave), mas para ver se a prisão os fazia falar. Nada que cause estranheza a quem costuma acompanhar os processos-crime, onde a auto-incriminação dos suspeitos — por escutas ou por confissão — é quase o único método investigatório que a incompetência do MP cultiva (e, depois da transcrição da escuta feita a Paulo Portas no processo dos submarinos, ficámos a saber que a incompetência pode não ser apenas inocente, mas malévola e orientada).

    Dizem-nos agora os suspeitos habituais que a prorrogação da prisão preventiva daqueles dois arguidos, requerida pelo MP e fatalmente acompanhada pelo juiz, se ficará a dever à chegada de novos factos ou novas "provas" ao processo — o que, em si mesmo, contradiz o fundamento da prisão baseado em potencial destruição de provas. Pior ainda é se essas tais "novas provas" não são mais, como consta noutras fontes, do que os dados bancários da conta de Santos Silva na Suíça, cuja chegada ao processo o MP terá atrasado deliberadamente durante um ano, justamente para as poder usar no timing adequado para fundamentar a prorrogação da prisão preventiva. Porque ninguém duvida de que tanto o procurador como o juiz estão dispostos a levar a prisão até ao limite absurdo de um ano, sem acusação feita.

    Que a tudo isto — mais a já inqualificável violação do segredo de justiça, transformado numa espécie de actividade comercial às claras — se assista em silêncio, com a procuradora-geral a assobiar ao vento e o Presidente da República, escudado na desculpa da separação de poderes, fingindo que nada disto tem a ver com o regular funcionamento das instituições, que lhe cabe garantir, enquanto se discute, nem sequer a pena ilegal de prisão preventiva, mas a pena acessória de humilhação de um homem que foi duas vezes eleito pelos portugueses para chefiar o Governo e que agora se bate pelo direito de usar as botas por ele escolhidas e ter um cachecol do Benfica na cela, é sinal do estado de cobardia cívica a que o país chegou. As coisas estão a ficar perigosas. Eu não votarei em quem não prometa pôr fim a esta paródia do Estado de direito.»

14 comentários :

  1. Esta última frase vale pelo texto todo:
    "Eu não votarei em quem não prometa pôr fim a esta paródia do Estado de direito.»
    Excelente MST

    ResponderEliminar
  2. Politica canalha



    Assente e aceite , baseada em lugares comuns, engodo fácil para néscios e gente amoral, está a utilização sistemática da insidia, da calunia , do vilipendio para atingir adversários políticos, vender jornais, gastar horas de televisão e , enquanto dura, promover a figuras públicas, com estatuto de «justiceiros». Algumas pessoas, que , passada a «onda»,voltam necessariamente à vulgaridade.

    São conhecidos os jornalistas , comentadores ,pivôs de televisão que alimentam estes processos.

    Cientes das «verdades » insofismáveis de ditados populares como «não há fumo sem fogo» ,«quem anda à chuva é que se alaga » etc, e cientes do peso que estes tem na formação do pensamento dos mais incautos, lá estão eles sempre disponíveis, pressurosamente disponíveis, para nos dar conta da «riqueza» do seu pensamento enquanto arrastam a barriga pela lama, numa volúpia irreprimível.

    Bom, assim é, assim será.

    ResponderEliminar
  3. Nem sempre concordo com o MST,sinal evidente que ainda me é lícito pensar pela própria cabeça o que não me aconteceu nos idos dos anos 60-70,mas este artigo encheu-me as medidas e reconheci aqui o filho de um PAI que se fosse vivo ou estava preso(politicamente)ou já tinha escavacado com "esta paródia do Estado de Direito"em que vivemos.

    ResponderEliminar


  4. Adoro a frontalidade de Miguel Sousa Tavares!

    ResponderEliminar
  5. "Eu não votarei em quem não prometa pôr fim a esta paródia do Estado de direito.»". Eu tb não. Estou farto do "respeitinho" a esta canalha que está a dar cabo do país e das pessoas dignas. Chega de calculismos eleitoralistas. Prefiro perder as eleições do que ganha-las sem honra e sem glória! Para tanto bastava o Inseguro!

    ResponderEliminar
  6. Também respeito a frontalidade de mst, contudo é preciso perceber que quando erra também se engana frontal e fortemente; aconteceu no julgamento feito sobre o debate entre Sócrates e passos nas eleições legislativas.
    Também o Pai, nos célebres editoriais no "Diário Popular" era tal e qual.
    Foram precisos quatro anos deste governo comandados por cavaco, passos, portas e comandita para mst se revoltar e perceber que se tinha enganado redondamente. É verdade que passos revelou-se um verdadeiro farçante actor do ludíbrio e da mentira que até conseguiu enganar, inicialmente, um velho leão da política como Mário Soares enquanto portas já todos sabíamos desde o "independente" que era um pantomineiro total e politicamente um grande sacana.
    O pecado de mst é que, tal como pacheco, pulido valente e outros intelectuais, ainda respeitados por nuitos, têm um peso de resposabilidade superior ao homem comum e não podem lançar "certezas frontais" para a opinião pública pois se estão errado ajudam os portugueses a lançar-se na desgraça; aconteceu com mst n´caso do debate acima referido.

    ResponderEliminar
  7. Excelente MST!!!!
    Obrigada, bem haja.
    Quantos serão precisos para pôr este país na ordem?
    Vejo tão poucos com esta coragem neste país adormecido.
    Força Miguel.

    ResponderEliminar
  8. O Caro José Neves está a ser terrivelmente injusto com MSTavares. Não conheço outro jornalista na nossa... imprensa, que mais empenho (e coragem) tenha mostrado em exigir esclarecimentos sobre a prisão de José Sócrates. E não deve ser fácil - penso eu.

    ResponderEliminar
  9. Força M.S.Tavares,estamos fartos destes cretinos que nos governam.Estamos fartos desta Justiça,de alguns juízes que se julgam donos disto.Os exemplos que nos deixam,são,no mínimo,dúbios.Parece que estão alinhados politicamente com esta corja que temos que aturar e,ainda,com um " presidente" rasca.

    ResponderEliminar
  10. Excelente análide de MST. Parabéns!
    Só peca por não ter feito uma análise comparativa com o caso do DDT Ricardo Salgado.
    É pena...

    ResponderEliminar



  11. O TIRO VAI-LHES SAÍR PELA CLOACA

    ResponderEliminar
  12. Ainda há dúvida de que Portugal é um País de prepotentes, comissionistas e LADRÕES?!

    ResponderEliminar