• Fernanda Palma, O dever da dúvida:
- «Há, no processo de José Sócrates, uma dúvida insuperável. Tal dúvida antecede a que se refere à verdade dos factos e tem a ver com o modo como se fundamenta a prisão preventiva. Se a relação entre factos e juízos de valor é essencial, não é visível para os juristas, e menos ainda para os leigos, uma fundamentação que documente em factos objetivos e consensuais o perigo de fuga ou de perturbação do inquérito.
Na verdade, está apenas em causa um juízo de perigo, que incide sobre uma mera probabilidade (embora elevada). Mas em que se fundamenta essa probabilidade? Em circunstâncias objetivas conhecidas ou em simples apreciações da personalidade do arguido? Há comportamentos que demonstrem um objetivo de fuga ou uma probabilidade real de o arguido destruir provas ou interferir com testemunhas fora da prisão?
Para além das dúvidas acerca do juízo e sobre a lógica da decisão (segue um modelo conhecido?), a prisão preventiva não se pode fundamentar na revolta do arguido, no contexto político que o envolve ou na sua posição moral perante o processo. Estas questões não são postas entre parênteses com o argumento de que há um dever de confiança nos tribunais, com um discurso de oráculo ou com fugas de informação.
A confiança na justiça só pode ser alimentada pela comunicação pública, transparente, refletida e fundamentada de decisões sobre direitos fundamentais. Se não se tem conseguido explicar com exatidão e clareza duas ou três razões sólidas, factuais e lógicas (e não meras conclusões) que justificam a manutenção da prisão preventiva, o dever para com a justiça passa a ser não o de confiança mas sim o de dúvida.
A dúvida não tem nada a ver com gostos pessoais nem se coloca no mesmo plano da dúvida sobre o significado do que Sócrates terá feito. Esta dúvida sobre a necessidade da prisão preventiva é prévia. Com efeito, a solução justa de um caso pressupõe a verdade dos factos, mas essa verdade pressupõe que quem os define se sujeite a regras de autocontrolo e de justificação sobre as quais não possa haver dúvida.»
Uma denúncia vigorosa da mediocridade comprometida do discurso judiciário. Excelente.
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