“Depois das aulas, era tempo de cowboys e índios. Os meninos rebolavam-se no tapete da sala. O índio gritava "Quero o teu escalpe" e o cowboy respondia "Vais morder o pó!" Ignorando os códigos da banda desenhada, o avô acorria a separá-los: "Porque é que vocês não são amigos? Vá lá, escolham: ou são ambos índios ou são ambos cowboys. Assim podem ser amigos e é muito mais engraçado." E os meninos, sentados no chão, solidários e desencantados, já tinham, da vida, a lição. Era tarde para levar o avô a Buffalo Bill e a Sitting Bull. A liberdade, ali, era crescer.
Anos mais tarde e chegada a hora dos matraquilhos, os rapazes já não iam para casa. Preferiam o salão de jogos de um café. Porque a mesa de matraquilhos que tinham na garagem fora virtuosamente subvertida pelo avô. Ao ver o jogo, ele mandara recolocar ao contrário metade dos bonecos. Já não era um Benfica-Sporting, era um Benfica e Sporting unidos contra ninguém. Uma baliza tornara-se inexpugnável, com os dois guarda-redes lado a lado, em plantão fraterno e cooperante; a outra era um buraco negro, escancarado. À frente deles, dez férreos mocetões de vermelho e dez de verde, trespassados nos ombros por seis varões sucessivos, olhavam agressivamente a baliza vazia. O avô achava que era mais bonito assim: "todos", dizia, "a remar para o mesmo lado". Os rapazes percebiam que era tarde para o levar a ler A Bola. E sabiam já que a vida não era o companheirismo simplista de Lorde Baden-Powell, nem as unanimidades espontâneas de Kim Jong-Il. A liberdade, ali, era acabar de crescer.
Hoje, são adultos. Diferentes entre si, como é normal. Um gosta de carne, outro de peixe. Perderam ambos uma mulher que disputaram. Querem uma vida melhor, mas aceitam que não entendem por tal a mesma coisa. Sabem respeitar a diferença, mas sabem também que isso é afirmá-la. E preferem a festa possível, nas ruidosas tensões do século, à uniformidade organizada, nas sombras e silêncios da caserna ou do convento. E o avô? O avô ainda acredita que dois homens de boa-fé e com a mesma informação chegam naturalmente a uma mesma conclusão. É tarde para o levar a ler a mais sucinta vulgata de um qualquer Duverger. Se não conseguirem explicar-lhe, terão de respeitá-lo como ele é. Mas nos limites do respeito por si mesmos e com a consciência de que também já se fez tarde, aqui, para continuar a adiar a liberdade.”
domingo, setembro 17, 2006
Sugestão de leitura – De Maurice Duverger aos pactos
A crónica de Nuno Brederode Santos, no DN de hoje, intitula-se Torcer o pepino. Eis a história de uma família em que o avô “ainda acredita que dois homens de boa-fé e com a mesma informação chegam naturalmente a uma mesma conclusão”:
Marcelo Caetano está de volta.
ResponderEliminarZ