segunda-feira, março 03, 2014

Nós precisamos de exportar sobretudo outros bens e serviços,
não tornar o que já exportamos ainda mais barato

• João Galamba, O futuro não pode ser o passado:
    «E à décima avaliação lá se foi mais um milagre. De acordo com o último relatório do FMI sobre o programa de ajustamento português, a redução, muito acima do esperado, do défice externo tem pés de barro e não é sustentável: no momento em que a procura interna dá sinais de estabilização ou crescimento, lá se vai o ajustamento externo, o que prova que a sua redução foi meramente conjuntural e, em grande medida, dependente da fortíssima contração do consumo e do investimento.

    Se o diagnóstico do FMI quanto à sustentabilidade do ajustamento externo tende a estar correto, o mesmo não se pode dizer da solução proposta, porque o corte dos salários, num dos países mais pobres e desiguais da zona euro, não é pura e simplesmente uma solução viável. O corte dos salários, para além de injusto, é ineficaz, senão mesmo contraproducente. Em primeiro lugar, as razões da chamada falta de competitividade do país não se prendem com competitividade-custo, mas sim com a estrutura produtiva do país. Nós precisamos de exportar sobretudo outros bens e serviços, não tornar o que já exportamos ainda mais barato. Por outro lado, a via dos cortes salariais agrava a já de si insustentável dinâmica da dívida pública, porque um país com menos rendimento terá, forçosamente, mais dificuldade em pagar o ‘stock' de dívida existente.

    A redução do défice externo não foi toda feita à custa da queda das importações e do empobrecimento. Entre 2011 e 2013, o défice comercial (exportações menos importações de bens e serviços) melhorou 9,353 mil milhões de euros. Se as importações caíram 3,435 mil milhões por causa do empobrecimento, as exportações aumentaram 5,917 mil milhões. Ou seja, 63% da redução do défice externo não se deve ao empobrecimento (a percentagem é, na verdade, menor, porque há exportações que aumentam apenas porque algumas empresas deixaram de vender para o mercado interno, e não porque tenham aumentado a produção). A solução para os nossos problemas, e a via que permite compatibilizar a redução do défice externo com o desenvolvimento do país, passa, pois, por perceber que o que explica este crescimento não é corte dos salários.

    Os crescimentos de 1,889 mil milhões nos combustíveis, 1,104 mil milhões no turismo, 711 milhões nas máquinas e equipamentos, 603 milhões em produtos agrícolas e alimentares ou os 193 milhões no calçado não se devem nem a cortes salariais, nem às famigeradas reformas estruturais que visam flexibilizar os mercados de trabalho, produto e serviço, defendidas pelo FMI. Devem-se sim, em grande medida, a investimento e a uma parceria entre políticas públicas e privadas que, sobretudo na chamada "década perdida", permitiram que Portugal modernizasse o seu tecido produtivo e, de forma necessariamente gradual, fosse criando as bases para uma economia mais desenvolvida e mais sustentável.

    Se o nosso objetivo for o de manter este crescimento nas exportações, então resta continuar o esforço, público e privado, de transformação estrutural da economia, e investir e preparar pessoas, empresas e territórios para um futuro que realmente novo. Não podemos regressar ao triste fado de um país miserável, desqualificado e barato. Por muito que falte imaginação ao FMI (e ao governo), o futuro do país não pode ser o seu passado

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