domingo, agosto 14, 2011

Sensibilidade e bom senso

• Paulo Trigo Pereira, Sensibilidade e bom senso [hoje no Público]:
    'O memorando com a troika (MoU) é uma espécie de contrato incompleto entre o Governo português e as instituições internacionais CE/BCE/FMI. Obtemos empréstimos a juros mais baixos dos que teríamos nos mercados de capitais em troca de melhores condições financeiras. Ao contrário do que muitos julgam, apesar de ser mais exaustivo e rigoroso do que qualquer programa de governo, tem muitas zonas de penumbra e de discricionariedade, onde obviamente as opções políticas do Governo serão determinantes. E tem cláusulas com várias interpretações. O cumprimento do contrato não dispensa o Governo de clarificar e justificar publicamente qual o seu entendimento dessas cláusulas.

    1. O Governo deliberou aumentar já a taxa de IVA na electricidade de 6% para a taxa normal de 23% e não para a taxa intermédia de 13%. O que está no contrato é aumentar a taxa de IVA no final de 2011. Em vez de quase duplicar essa taxa, o que cumpriria o contrato, quadruplicou-a impondo sacrifícios enormes às famílias num bem essencial, numa altura em que também se agravam transportes públicos. Sim, porque para cumprir-se a descida da contribuição patronal para a segurança social (TSU), essa perda de receita terá de ser compensada por um aumento da taxa normal de IVA, que passará pelo menos para 24%.

    2. A justificação apresentada pelo Governo para esta subida, de que existe um buraco orçamental, não convence. Existe de facto um buraco, mas não só não é no IVA (aumentou 4,9%), como há diferentes formas de o tapar. E não deveria ser através de uma medida de forte impacto nas famílias e também nas empresas. Claro que não conseguindo cortar na despesa só resta a receita e, já que o Governo tinha que aumentar a taxa de IVA, aproveitou.

    3. Não só a medida é errada como a sua antecipação tem efeitos nefastos, pois ela deveria estar associada com uma outra medida inscrita no memorando para o final de 2011 que é a redução dos custos que nada têm a ver com a electricidade, mas que estão incorporados na factura. Estima-se que em 2011 eles sejam de 1200 milhões de euros. Se o Governo tivesse sensibilidade social e cumprisse o MoU deveria ter aumentado o IVA ao mesmo tempo que reduz estes custos. Convém lembrar que houve 170 mil cidadãos que, em cerca de 15 dias, subscreveram uma petição da DECO para a redução destes custos. É preciso algo mais para se perceber o que sentem os cidadãos?

    4. Algo que consta do memorando mas é ambíguo é o objectivo para o défice deste ano. Diz-se lá que se pretende um défice inferior a 10.068 milhões, ou seja 5,9% do PIB baseado nas projecções disponíveis. Ora como a recessão este ano vai ser mais pronunciada do que o previsto estes dois números não são compagináveis. Se o PIB baixa o rácio do défice no PIB aumenta. Será que o Governo já clarificou com a troika que o objectivo contratualizado é em termos absolutos e não relativos? O que está no memorando mais à frente esclarece que são valores absolutos e faz toda a diferença (400 milhões nos meus cálculos).

    5. O problema da taxa social única é o problema da quadratura do círculo neste memorando, não tem solução. Para ser eficaz no aumento da competitividade teria que ser significativa (10-12%), mas se o for tem custos económicos e sociais incomportáveis. O IVA da agora aumentada electricidade teria que subir para 26-27%. Para não ter estes custos tem que ser mais reduzida (3%-5%), mas neste caso não produz efeitos no aumento da competitividade das exportações.

    6. Para cumprir a tradição mais um fundo de pensões é transferido para a Segurança Social para tapar o buraco. Depois da PT, CTT, ANA, CGD, é agora a vez de se processar paulatinamente a transferência dos fundos de pensões da banca. As responsabilidades relativas a pensões são a chamada dívida implícita, pois não contam para a dívida pública, mas são dívida. Aquilo que deve preocupar os portugueses é se as receitas imediatas que se obtêm são actuariamente justas, isto é equivalentes às responsabilidades futuras. Porque se forem inferiores estaremos a pagar o diferencial em impostos ao longo dos anos. À semelhança do que existe nos Estados Unidos o Governo deveria criar o Gabinete do Actuário da Segurança Social que reportasse sobre estas transferências e analisasse a sustentabilidade do sistema. Os seus relatórios deveriam ser escrutinados por actuários independentes.

    7. Alberto João Jardim já nos habituou ao despesismo da Madeira e claro está às derrapagens orçamentais em "nome" do bom povo da Madeira. Isto apesar de termos um problema constitucional na construção do Estado português ao atribuir a totalidade dos recursos fiscais às regiões, algo quase ímpar na União Europeia. Alberto João tem razão, o problema é dos políticos do Continente. Tarde de terça-feira, 5 de Fevereiro de 2010. São aprovadas alterações à lei de Finanças Regionais favoráveis às regiões com 76 votos do PSD, 19 do CDS-PP, 16 do PCP, 2 do Partido Ecologista Os Verdes e 1 voto do PS da Madeira. Claro, na altura estava o PS no poder e PSD, CDS na oposição...

    Para além do recente contrato com a troika, existe outro bem mais antigo que é o contrato social entre nós cidadãos e o poder político, em que nós abdicamos de vários dos nossos direitos e de parte das nossas posses (através dos impostos) em contrapartida da ordem social, da justiça e da prosperidade. Sabemos que poderá vir aí uma crise dos dois lados do Atlântico e que as medidas indispensáveis para reduzir o défice trarão mais recessão. Não queremos um governo óptimo aluno, queremos um governo inteligente e com alguma sensibilidade relativamente a quem lhe deu a legitimidade política.'

1 comentário :

Rosa disse...

Excelente artigo e muito esclarecedor...
Já me perguntei várias vezes como é que políticos com esta inexperiência, impreparação, sede de poder e de protagonismo terão as qualidades necessárias e indispensáveis para "gerir os nossos destinos" em momento tão difícil e delicado.