sábado, junho 14, 2014

“Se não sabe porque é que pergunta?” [1]


Faz hoje um ano que o João Pinto e Castro morreu. Recordo-o no CC através dos textos que escreveu. O primeiro texto que escolho foi publicado no Jornal de Negócios. Dias antes, mais precisamente no dia 1 de Janeiro, passámos a tarde à conversa e o João expôs longamente o tema sobre o qual viria a escrever.

O que estamos nós a fazer aqui?
João Pinto e Castro

Jornal de Negócios, 8.1.2013

«Durante a maior parte da 2.ª Guerra Mundial, os alemães não mobilizados para a frente continuaram a levar uma vida normal, pois nunca faltaram matérias-primas às fábricas ou alimentos às famílias. A guerra trava-se lá longe, sem afectar o pacato quotidiano dos cidadãos. Os alemães não sabiam, nem cuidavam de saber, que a sua prosperidade assentava na pilhagem organizada dos recursos da Europa inteira.

"Não saber" o que não lhes convém saber é, como a actual crise europeia veio recordar-nos, um dos pontos fortes dos alemães. A Europa afunda-se na recessão duradoura, a pobreza renasce em países onde se tornara residual, metade dos jovens não encontra trabalho –, mas, na Alemanha, o Natal foi vivido na paz do Senhor, e isso é tudo o que importa.

Qualquer pessoa sensata entende que, um dia, o sofrimento chegará também à Alemanha. Não, desta vez, sob a forma de bombardeamentos mortíferos, mas de estagnação e desemprego induzidos pelo empobrecimento dos parceiros europeus, visto que 60% das exportações germânicas se dirigem à União Europeia e 40% à Zona Euro. Entretanto, como regularmente faz notar Wolfgang Munchau (colunista do Financial Times e ele próprio alemão), na República Federal reina a cegueira absoluta, imune aos avisos que chegam de todas as partes do mundo sobre a tacanhez da política adoptada por Angela Merkel.

O ponto inquestionável é que a União Europeia mudou de natureza, tornando-se numa coutada da Alemanha, a qual, mercê da sua dimensão geográfica, populacional, económica e financeira, se encontra de momento em condições de impor a sua vontade a todo o continente. Quanto maior o poder de que um país dispõe, mais necessário será que aja com autocontenção, mas a Alemanha parece apostada em demonstrar em todas as oportunidades ser um país em que ninguém pode confiar, dado que não só desrespeita os compromissos que assume, como infringe sempre que lhe convém as regras da União Europeia. Toda a gente se recorda como incumpriu o PEC; como ignorou as regras da concorrência socorrendo a sua indústria automóvel durante a recessão de 2009; como sabotou o funcionamento das instituições europeias; como condicionou publicamente a actuação do BCE; como se arrogou poderes de decisão que não lhe competem; como interferiu na política interna dos outros países membros, chegando ao ponto de fazer e desfazer governos; como, enfim, recentemente impôs o adiamento dos compromissos assumidos com os outros países em relação à projectada união bancária.

O que tem este novo Sacro Império Germânico que ver com a União Europeia que nos empenhámos em construir nas últimas décadas? Nada, como é evidente. Porque haveremos então de continuar a fingir que a União Europeia continua a existir? Os britânicos serão provavelmente os primeiros a decidir que não estão dispostos a ser comandados pela Alemanha, mas é possível que, a prazo, se lhe sigam a Itália, a Espanha e, por último, a própria França. Com a Alemanha ficarão decerto a Áustria (consumando por fim o adiado Anschluss) e a Holanda (uma gigantesca plataforma logística da Renânia-Vestefália). Quanto à Polónia, com uma longa experiência do que a casa gasta, não tardará a pôr-se a milhas.

Por cá reina a ilusória esperança de que, no intuito de salvar o euro, o bom senso acabará por ditar o aprofundamento da união, e que isso inevitavelmente implicará uma espécie de federação democrática. No horizonte dessa esperança encontram-se a união bancária, a união fiscal e a mutualização parcial das dívidas (vulgo eurobonds). No fim desse radioso caminho esperar-nos-ia, finalmente, a desejada união política. Valeria, assim, a pena sujeitarmo-nos a todas as sevícias concebidas pela troika. Sucede, porém, que, quando apreciou o Tratado de Lisboa, o Tribunal Constitucional Alemão recusou liminarmente a perspectiva da diluição da soberania germânica num futuro estado federal europeu. Nessas circunstâncias, o federalismo de que tanto se fala poderá ser burocrático e financeiro; mas jamais político, menos ainda democrático. Não haverá nele lugar para a consideração dos interesses particulares de povos como nós.

De 1910 até quase ao fim do século XX, Portugal cresceu quase sempre mais do que a Europa e, em particular, do que a Espanha. Dir-se-ia que, apesar de consideráveis erros cometidos ao longo de três regimes políticos diversíssimos, soubemos governar-nos. Foi então que optámos por subcontratar partes cada vez maiores da nossa política económica à União Europeia – processo coroado com a adesão ao euro – e o resultado está à vista.

Por muito nefasta que nos seja esta circunstância, não está evidentemente nas nossas mãos tomar agora a iniciativa de sair do euro. Mas um mínimo de lucidez recomenda que nos questionemos sobre o que estamos nós aqui a fazer – e que comecemos a ponderar, à luz dos nossos interesses geoestratégicos, que alianças alternativas deveremos buscar caso se confirme o presente rumo de desagregação da União Europeia.»

10 comentários :

jose neves disse...

Uma visão certeira historicamente fundamentada no conhecimento da prática política característica da Alemanha origem de duas grandes guerras na Europa apenas com um intervalo de apenas 25 anos. Mesmo no seio da UE, criada sobretudo para refrear os alemães, já promoveram e obrigaram o apoio da UE, as guerras pelo desmantelamento da antiga Yogoslávia e agora andam a promover a guerra civil na Ucrânia e, novamente, submetendo a UE aos seus ditames.
A visão de JPC é certeira e inteiramente actual pois o que previu é precisamente o que, mais ou menos *as claras, está acontecendo.
Já agora, e dado que nunca tinha visto um erro ortográfico no impecável português do CC, penso que o "aja" do texto é um tempo do verbo haver, logo deverá ser escrito "haja". Ou estarei errado? Um erro no CC faz-nos duvidar de nós próprios.

jose neves disse...

adenda,
Afinal o CC (ou JPC) tem razão a frase é que "aja com contenção"(verbo agir) e não eu a li que foi " aja contenção" (verbo haver).
As minhas desculpas pela leitura superfial.

Ana Matos Pires disse...

Um beijo grande.

Miguel Abrantes disse...

Outro beijinho, querida Ana.

Anónimo disse...

O problema já se alastrou à própria Alemanha. A generalização e abuso dos minijobs está a deixar uma boa fatia da população alemã de fora da prosperidade que Herr Merkl prometeu para todos os cidadãos alemães.

André Castro disse...

Sempre eterno, o nosso João.

Anónimo disse...

Um artigo de grande mérito.
A Alemanha já esteve na origem de duas guerras mundiais.
É necessário criar uma federação de países que coloquem a Alemanha fora do Euro. Toda a política externa portuguesa deveria estar orientada nesse sentido, o que não se consegue com o actual Governo português.

Anónimo disse...

Artigo corajoso, culto e fundamentado. Como sempre de uma enorme lucidez, à frente do seu tempo. Artigo publicado há mais de uma ano, quando já estava tão doente. Sempre a fazer jorrar as ideias e as polemicas que nos interpelam. As minhas homenagens a este grande senhor que nos deixou aos 62 anos, com tanto ainda para dar. Fui há pouco ao Blogoexisto ler o que escreveu nos últimos tempos da sua vida. Inteligência, saber e cultura em todos os azimutes. Bom gosto. Boa escrita, boa critica. Inconformismo e bom humor nunca o abandonaram.Faz-me falta.

Anónimo disse...

Artigo de uma lucidez impressionante, escrito há mais de um ano, quando (com 62 anos) já se encontrava tão doente. Com uma inteligência viva e uma bagagem culta em todos os azimutes esteve sempre um pouco á frente do seu tempo, Sempre contra a corrente do oportunismo e do pensamento único do tempo presente. Faz-nos falta

Anónimo disse...

Desde há um ano e meio que vimos, finalmente! sair alguns notáveis livros de pensadores portugueses que, em registos diversos, nos apontam esta linha de re-posicionamento critico a construir, como a aqui preconizada pelo economista João Pinto e Castro: João Ferreira do Amaral com 2 livros desassombrados sobre Portugal e o Euro (e seu federalismo suicida), Medeiros Ferreira, historiador arguto, que nos conduz pelas raízes do ideal de união europeia desde o final do século XIX, desvendando as motivações e os limites dessas ideias subjacentes à real politiK, por vezes terríveis; e mais Adriano Moreira, com o seu saber sereno da historia e a reflexão dos valores que deveriam guiar as nossas elites.