segunda-feira, novembro 20, 2006

Rui Pereira escreve ao CC

O Dr. Rui Pereira, Coordenador da Unidade de Missão para a Reforma Penal, escreveu um comentário no CC, ao mesmo tempo que teve a gentileza de o remeter para o meu e-mail. Dada a relevância óbvia da análise efectuada por este professor de direito criminal, reproduzo na íntegra o texto que elaborou:

    Exmo. Sr. Dr. Miguel Abrantes,

    Publicou V/Exa., no seu blog, uma referência lisonjeira a um artigo que publiquei no Correio da Manhã, no passado dia 19 de Novembro de 2006, a propósito da revogação de leis penais por leis que contêm um regime de mera ordenação social (no caso concreto, as Leis n.os 25/2006, de 30 de Junho, 28/2006, de 4 de Julho, e 30/2006, de 11 de Julho).

    Tendo em conta que o artigo de opinião se destinou ao grande público, enquanto o seu blog é consultado, provavelmente, por uma maioria de juristas, venho prestar alguns esclarecimentos que reproduzem, no essencial, um artigo da minha autoria, incluído no “Liber Discipulorum para Figueiredo Dias”, publicado em 2003, pela Coimbra Editora, acerca do que penso sobre esta matéria (cfr. p. 1180 e seguintes):

      1. Como é sabido, a Constituição manda aplicar retroactivamente a lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido (artigo 29.º, n.º 4). Em decorrência deste mandamento constitucional, o n.º 2 do artigo 2.º do Código Penal estabelece que, quando um facto deixa de ser punível, se aplica retroactivamente a nova lei e que, mesmo após o trânsito em julgado, cessam os efeitos da condenação.

      2. A meu ver a retroactividade da lei penal mais favorável deve prejudicar até o caso julgado em todas as situações. A utilização do termo arguido no n.º 4 do artigo 29.º nada prova em contrário, desde logo porque, para a Constituição, arguido é aquele a quem se aplica a lei penal, mesmo que já tenha sido condenado por sentença transitada em julgado, tal como decorre com clareza do artigo 282.º, n.º 3. Aliás, de forma decisiva, deve assinalar-se que a retroactividade é imposta pelos princípios da igualdade e da necessidade da pena, que prevalecem sobre as razões de segurança e certeza que recomendariam a intangibilidade do caso julgado (cfr., sobre esta argumentação, o artigo que publiquei na Revista Portuguesa de Ciência Criminal – n.º 1, ano 1, 1991, p. 58 e nota 13). Convém ter presente que a tese da inconstitucionalidade da limitação do caso julgado é também defendida por Fernanda Palma, Teresa Beleza, Gomes Canotilho e Vital Moreira, bem como por parte dos juízes do Tribunal Constitucional.

      3. Por estas razões, no contexto da reforma penal em curso, o Projecto de Revisão do Código Penal contém um acrescentamento ao n.º 4 do artigo 2.º que manda aplicar imediatamente a lei penal mais favorável, mesmo após o trânsito em julgado da sentença condenatória, quando o arguido já tiver cumprido pena igual ou superior ao limite máximo da pena prevista na nova lei. Nos restantes casos, o Projecto de Revisão do Código de Processo Penal contempla a possibilidade de reabertura da audiência, a requerimento do arguido (já condenado por sentença transitada em julgado), para efeito de determinação da pena ao abrigo da nova lei concretamente mais favorável.

      4. Todavia, quando uma transgressão ou uma contravenção são substituídas por uma contra-ordenação, o primeiro problema que se coloca é o de saber se há uma despenalização no sentido do n.º 2 do artigo 2.º do Código Penal. O argumento literal não é decisivo, uma vez que se fala com frequência em penas disciplinares e em punição no âmbito do ilícito de mera ordenação social. Por isso, entender que o termo pena abrange, para determinados efeitos, sanções do Direito de Mera Ordenação Social corresponde ainda a uma interpretação compatível com o princípio da legalidade. Ante a ambivalência do termo, são os argumentos histórico, sistemático e teleológico os decisivos para interpretar o alcance do n.º 2 do artigo 2.º.

      5. Em primeiro lugar, convém não esquecer que o Direito de Mera Ordenação Social foi criado como uma derivação do próprio Direito Penal, no quadro de um movimento descriminalizador, desencadeado na Alemanha, em 1953, por influência de Eberhard Schmidt. Embora constitua ilícito administrativo, integra-se no direito sancionatório público. Por exemplo, um autor alemão, Michels (e, entre nós, Costa Andrade) assinala que existe uma unidade estrutural entre o Direito Penal secundário e o Direito de Mera Ordenação Social. Na prática esta unidade comprova-se facilmente, pelo vaivém entre os dois ramos do Direito. Os crimes de poluição e de danos contra a natureza eram antes de 1995 contra-ordenações. Inversamente, as infracções estradais estavam integradas no Direito Penal antes de 1994.

      6. Esta natureza comum leva a que se apliquem no Direito de Mera Ordenação Social, por exemplo, o princípio da legalidade e as regras sobre dolo, negligência, erro, imputabilidade, tentativa, desistência e comparticipação próprias do Direito Penal, com pequenas especificidades (artigo 2.º e seguintes do Decreto Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro). No plano constitucional, o nº 10 do artigo 32º (referente às garantias do processo penal) manda aplicar os direitos de audiência e defesa no processo contra-ordenacional. A identidade de regimes vai ao ponto de também se aplicar retroactivamente a lei de mera ordenação mais favorável (artigo 3.º, n.º 2, do Decreto Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro).

      7. Quando o legislador decide transformar um ilícito criminal num ilícito de mera ordenação social, ou vice-versa, existe uma só decisão de política criminal e uma verdadeira sucessão de leis. Por exemplo, o legislador deixa de considerar crime o consumo de droga, na medida em que o passa a qualificar como contra-ordenação. Seccionar esta decisão político-legislativa em dois momentos significa (com todo o respeito intelectual que tenho pela opinião oposta) não compreender a essência de uma tal decisão. Pode dizer-se, com inteiro rigor, que o legislador procede a uma substituição de regime. A lei anterior não deixa de vigorar por caducidade, mas sim por revogação (seja expressa ou tácita).

      8. A provar todo este raciocínio, o artigo 20.º do Decreto Lei n.º 433/82 determina que se o mesmo facto constituir, ao mesmo tempo, crime e contra-ordenação, será sempre punido só como crime, apesar de se aplicarem as sanções acessórias do Direito de Mera Ordenação Social. Deste modo, o legislador aplica o princípio non bis in idem (artigo 29.º, n.º 5, da Constituição), reconhecendo a unidade estrutural dos ilícitos. Uma pessoa não pode ser punida simultaneamente com uma multa penal e com uma coima, embora possa, cumulativamente, ser condenada numa pena de multa e numa multa disciplinar, em processos paralelos, se o mesmo facto constituir ilícito criminal e disciplinar.

      9. Um último argumento, ad terrorem, terá de ser considerado. Se pretendermos que a retroactividade da lei penal mais favorável impede a sucessão entre leis penais e de mera ordenação social (como defendem Germano Marques da Silva e Taipa de Carvalho), o legislador ficará privado de um importante instrumento de política legislativa. Sempre que quiser converter um crime em contra-ordenação, e vice-versa, será obrigado a aprovar uma amnistia por acréscimo. Com efeito, se o facto deixar de ser criminoso, nunca poderá continuar a aplicar-se a lei penal devido à proibição de ultra-actividade (artigo 29.º, n.º 4, da Constituição). E nem se diga (como Taipa de Carvalho) que o regime de mera ordenação social pode ser aplicado retroactivamente. É que as sanções do Direito de Mera Ordenação Social também restringem direitos, liberdades e garantias, não podendo ter eficácia retroactiva, por força do n.º 3 do artigo 18.º da Constituição. E se, pelo contrário, o ilícito de mera ordenação social for convertido em crime, valerá a genérica proibição de retroactividade do Direito Penal (artigo 29.º, n.º 1, da Constituição) e de ultra-actividade do Direito de Mera Ordenação Social.

      10. É por estas últimas razões que não concordo inteiramente com a posição expressa pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 9 de Maio de 2002 (tirado por unanimidade mas com declarações de voto dos Conselheiros Simas Santos e Abranches Martins). Se é a Constituição que proíbe, devido à retroactividade da lei penal mais favorável, que a substituição do ilícito criminal pelo ilícito de mera ordenação social seja tratada como sucessão leis, não é o legislador ordinário que pode resolver o problema com um regime transitório. A posição do Supremo incorre, por isso, num paradoxo: se o regime transitório fosse “necessário” seria inconstitucional. Porém, sem o considerar indispensável, eu entendo que o regime transitório é útil. É útil para afastar dúvidas interpretativas e, sobretudo, para esclarecer onde e como continuam a correr os processos em curso.

      11. É justamente por tais razões que aplaudo o regime transitório previsto nas Leis n.º 25/2006, 28/2006 e 30/2006 (artigos 20.º, 14.º e 36.º, respectivamente). Os processos anteriormente instaurados continuam a correr nos tribunais, sendo-lhes aplicável o regime mais favorável. Os novos processos, ainda que relativos a factos pretéritos, serão instruídos já por autoridades administrativas. Em todos os casos, entendo que o regime de mera ordenação social é mais favorável. Assemelhando-se a multas, as coimas não podem ser convertidas em prisão subsidiária (artigo 49.º do Código Penal) e não têm o efeito estigmatizante que advém da possibilidade de constarem do registo criminal. Contudo, tenho defendido – e continuo a defender – que, na determinação da coima, não se deverá exceder o limite máximo da multa anteriormente aplicável para não converter um regime teoricamente mais favorável num regime concretamente menos favorável.

      12. Por fim, uma palavra acerca da competência para a aplicação das sanções. Não vejo nenhum problema em leis da Assembleia da República conferirem uma competência excepcional e casuística aos tribunais para aplicarem coimas, no âmbito de uma sucessão de regimes. Tratando-se de matéria da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia (artigo 165º, nº 1, alínea p), da Constituição), não há inconstitucionalidade orgânica. E embora os argumentos de autoridade valham o que valem, o Conselho Superior da Magistratura, que me dizem ter sido ouvido antes da aprovação destes regimes, manifestou-se concordante com uma tal solução.


    Sem outro assunto, receba os meus cordiais cumprimentos,

    Lisboa, 20 de Novembro de 2006

    Rui Pereira

17 comentários :

Anónimo disse...

Eu logo vi...

"Se pretendermos que a retroactividade da lei penal mais favorável impede a sucessão entre leis penais e de mera ordenação social (como defendem Germano Marques da Silva e Taipa de Carvalho), o legislador ficará privado de um importante instrumento de política legislativa."

Caro Dr. Rui Pereira:

Só um comentário- espere pelas decisões dos tribunais. Vai ver que as decisões serão diversas, consoante as sensibilidades e por isso, só mesmo aqui, neste blog, para se poderem ler insultos à inteligência de quem disse que a solução agora adoptada poderia ser "ilegal".
Por outro lado, parece-me que solução que defende, não é a melhor,neste contexto. Para polémicas, bastam as que surgiram com a legislação de política criminal.
Ainda vou ler, sobre este assunto, a posição do seu estimado crítico Costa Andrade...

Mas ainda assim, pode ser que se refaçam concepções que divirjam das soluções do Prof. Germano e do jurista Taipa de Carvalho.
O problema é que não são eles quem julga nos tribunais.

Cumprimentos, se me ler.

Anónimo disse...

Quem é este comentador anonimo, que responde ao autor do texto? Se o autor do texto se identifica,porque razão o anonimo não faz? Ao esconder-se atras do anonimato,o que pensarão os leitores deste blog sobre esse sr? Eu sei o que penso. E você?
Ribeiro

Anónimo disse...

"Ribeiro"...que importância tem o nome, neste caso?
E se eu puser por exemplo, "Miguel", acha suficiente?

Ou preferia um apelido como "Ribeiro"?

Anónimo disse...

O autor do texto, quanto a mim, merece o elogio de se dirigir a um blog e esclarecer a questão jurídica em termos correctos, a meu ver.
Por isso, não levará a mal que lhe respondam aqui nestes comentários. Levará?

Anónimo disse...

O nome num debate desta natureza é de primordial importancia para mim, que sou leigo na materia, mas não sou burro. sei porém distinguir o que é uma atitude de grande nobresa e de caracter, de outra, que se esconde e não dá a cara. isso eu sei, sabemos todos, não é meu caro.
ribeiro

Anónimo disse...

Não, não sei se será assim. Não conheço a sua cara ( nem estou interessado em conhecer) e não é pelo apelido Ribeiro que se fica a conhecer.
Começo no entanto a conhecer que para si, quem vê caras também vê corações.
Olhe que não...olhe que não.

Anónimo disse...

Concluo que o silêncio é de ouro.

Anónimo disse...

Conclusão final. O que eu sei é que não sou jurista. razão pela qual não dou a cara. mas ficam mal na fotografia aqueles que o são. deste modo, enfiam uma carapuça (tipo eta)para atingirem com umas pedradas as costas dos seus adversarios. A CORAGEM NÃO É UM ATRIBUTO DE TODOS, MAS SÓ DE ALGUNS.
O cão não ladra por valentia, mas sim por medo .Alguns são tidos como corajosos só porque tiveram medo de sair correndo.
ribeiro

Anónimo disse...

Lá está o ribeiro a falar de cães como entendido na matéria ...

Anónimo disse...

Obrigado Rui Pereira pelo admirável esclarecimento. Parabéns.

Anónimo disse...

Que grande lição deu o Senhor Doutor Rui Pereira. E não me refiro ao plano jurídico. Um académico de elevada estatura vem responder aos seus críticos. Fez bem, nós, os leigos que acompanhamos este blog, agradecemos.
Muito obrigado.

Anónimo disse...

É uma opinião respeitável do Dr. Rui Pereira, sendo que a última palavra é dos tribunais.

Anónimo disse...

O anónimo Miguel Abrantes consagrou-se, definitivamente, como a voz que diz o que os políticos socialistas (A. Costa x2, V. Moreira ou R. Pereira) pensam mas não têm coragem de dizer.
Este e outros carinhos (lembro-me de um de V.M.) são reveladores que o serviço privado (não público) perstado pelo anónimo Miguel Abrantes tem todo o apoio socialista.
Se é este o nível de debate que apadrinham, não se queixem da qualidade da democracia portuguesa.

Anónimo disse...

Prof. Rui Pereira, não acha que isto é muita areia para quem está habituado a copiar sentenças, mudando apenas o nome do réu?

josé disse...

"O anónimo Miguel Abrantes consagrou-se, definitivamente, como a voz que diz o que os políticos socialistas (A. Costa x2, V. Moreira ou R. Pereira) pensam mas não têm coragem de dizer.
Este e outros carinhos (lembro-me de um de V.M.) são reveladores que o serviço privado (não público) perstado pelo anónimo Miguel Abrantes tem todo o apoio socialista.
Se é este o nível de debate que apadrinham, não se queixem da qualidade da democracia portuguesa. "

Subscreve-se inteiramente, acrescentando o seguinte:

Nesta discussão, torna-se evidente que a questão jurídica de fundo, não é dominada pelo autor do blog.
O mesmo, no entanto, não se coibiu de insultar a inteligência alheia como se pode ler em postas anteriores, injuriando quem apontou desde logo, problemas na formulação desta lei despenalizadora.
Tal como Rui Pereira reconhece, Germano Marques da Silva e Taipa de Carvalho, para além de juízes do STJ, numa decisão concreta, não seguem a argumentação defendida por aquele jurista.

Neste post, como noutros, a credibilidade de quem escreve afere-se por esse nível de argumentação.

Anónimo disse...

Fui aluno do Professor Rui Pereira e tenho-o como um grande mestre do Direito. Nunca faltei a uma aula sua, que eram absolutamente fora-de-série. Se sei alguma coisa de Penal, a ele o devo.
Este comentário do Professor Rui Pereira comprova-o.

Anónimo disse...

Pois estavas na fila da frente e no final da aula tinhas sempre uma dúvidazinha para tirar, não era?