Alfredo José de Sousa, juiz conselheiro jubilado e ex-presidente do Tribunal de Contas, escreve um artigo na edição de hoje do Público intitulado Prevenir a corrupção. Fica-se a saber que colaborou nas medidas entretanto aprovadas pela Assembleia da República para combater a corrupção. Eis o artigo:
"A AR rejeitou a carga burocrática do projecto Cravinho, mas a nova lei tem muito em comum com aquela proposta
1. A Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção (Mérida, 2003), aprovada pela Assembleia da República (D.R., de 21/9/2007), dispõe no seu art.º 6.º que "cada Estado Parte deverá assegurar que haja um ou mais órgãos encarregados de prevenir a corrupção".
Todo o capítulo II dessa Convenção, onde se insere aquele normativo, ocupa-se das medidas preventivas da corrupção. Por seu turno, o Capítulo III prescreve a correspondente criminalização, detecção e repressão das práticas que directa ou indirectamente integram o respectivo conceito.
Em Portugal não existe uma estratégia global de prevenção da corrupção nem quaisquer serviços ou departamentos vocacionados exclusivamente para essa dimensão da luta contra a respectiva criminalidade.
Como declaração de interesses, desde já, assumo que colaborei estreitamente com o Dr. Alberto Martins, Presidente do Grupo Parlamentar do Partido Socialista, na elaboração do respectivo projecto.
2. Para suprir tal lacuna, a Assembleia da República aprovou recentemente a lei que cria o Conselho de Prevenção da Corrupção (CPC).
O ponto de partida de tal iniciativa legislativa foi a rejeição pela direcção do grupo parlamentar do projecto do então Deputado João Cravinho. Projecto que se intitulava "Providências de combate à corrupção mediante gestão preventiva dos riscos da sua ocorrência", o que desde logo dá a medida da sua complexidade burocrática e duvidosa exequibilidade prática.
Basta ver que preconizava a obrigação de todas as "entidades públicas", incluindo as da administração autárquica e do sector empresarial do Estado elaborarem anualmente planos pormenorizados de prevenção da corrupção sujeitos à aprovação do respectivo membro do governo ou órgão autárquico.
Isto tudo de acordo com as Orientações Estratégicas de prevenção da corrupção, aprovadas pelo Governo no início do respectivo mandato.
O projecto Cravinho criava junto da Assembleia da República a "Comissão para a Prevenção da Corrupção", à qual incumbia, além do mais, elaborar uma Carta Nacional de Prevenção da Corrupção a aprovar pela Assembleia da República.
Não se vislumbra qualquer articulação desta Carta com os instrumentos a aprovar pelo Governo.
3. O diploma aprovado pela Assembleia da República rejeitou sobretudo a carga burocratizante do projecto Cravinho, mas adoptou basicamente as mesmas competências e atribuições para o Conselho de Prevenção da Corrupção que institui.
Ou seja, recolhe e trata centralizadamente as informações relativas à detecção e prevenção de factos de corrupção e criminalidade económico-financeira conexa; acompanha a aplicação dos instrumentos jurídicos e medidas administrativas adoptadas para essa prevenção pela Administração Pública e Sector Público empresarial e respectiva avaliação; dá parecer sobre os instrumentos normativos nacionais e internacionais nessa matéria; colabora com as entidades públicas interessadas na adopção de códigos de conduta e boas práticas e na formação dos respectivos agentes para a prevenção da corrupção.
Aliás, à semelhança do que acontece em França com o Serviço Central da Prevenção da Corrupção, desde 1993, a funcionar junto do Ministério da Justiça.
Mas vai mais além: o CPC apresentará à Assembleia da República e ao Governo um relatório anual com a "tipificação de ocorrências ou risco de ocorrência de factos" integradores de corrupção ou infracções conexas, identificando as actividades de risco agravado na Administração Pública ou no Sector Público Empresarial.
Consequentemente, tal relatório conterá recomendações de medidas legislativas ou administrativas adequadas à prevenção da corrupção e infracções conexas.
4. Na entrevista ao "Diga lá, Excelência" (PÚBLICO, 27.7.08), João Cravinho mostra algum despeito pessoal e político pela não adopção do seu projecto e descura, talvez por ligeireza de leitura, o que o diploma aprovado pela Assembleia da República tem de comum com os seus louváveis propósitos.
Como qualificar de "forte pendor governamental" uma entidade presidida pelo Presidente do Tribunal de Contas, cuja independência constitucional, legal e de facto é uma realidade e composta por quatro membros integralmente independentes do Governo (director-geral do Tribunal de Contas, um magistrado do Ministério Público, um advogado e uma personalidade de reconhecido mérito na matéria, designados por entidades que são independentes do Governo)? Como ignorar que os três outros membros (inspectores-gerais dos Ministérios mais sensíveis ao fenómeno da corrupção) são, além de minoritários, dotados legalmente de independência técnica e funcional? Como afirmar que nestas circunstâncias a própria independência do Tribunal de Contas não é favorecida? Se compete ao próprio CPC aprovar o regulamento da sua própria organização e funcionamento, bem como dos serviços de apoio respectivo, como afirmar que os seus membros vão "a sessões e nada mais"? Se cabe ao próprio CPC propor (não podia ser doutro modo) ao Ministério das Finanças o quadro desses serviços de apoio e se lhe compete a nomeação do respectivo pessoal, que terá vencimento majorado, e a possibilidade de contratação de consultores técnicos, como duvidar que este organismo não se venha a dotar de "pessoal altamente qualificado"? Se isto é governamentalizar a prevenção da corrupção, então como qualificar as Orientações Estratégicas de Prevenção da Corrupção e os Planos de Prevenção da Corrupção aprovados necessariamente pelo Governo, conforme constava do projecto de Cravinho?
5. A estrutura do CPC agora criado e a sua geminação com o Tribunal de Contas foi uma opção política ponderada e não gratuita.
Importa ter presente que a preocupação em prevenir a corrupção e infracções conexas traduz a protecção dos interesses financeiros do Estado (a corrupção implica uma despesa pública encapotada).
O Tribunal de Contas no desempenho das suas atribuições de controlo financeiro atravessa todas as áreas do Estado, incluindo aquelas onde o risco de corrupção é maior (ex. contratação pública).
A colaboração do Tribunal de Contas na prevenção da "fraude e da corrupção relativamente aos dinheiros e valores públicos" é algo que está na sua lei de organização (art.º 11.º, n.º 2).
Daí as sinergias que para o CPC resultam de tal geminação com o Tribunal de Contas.
Iguais sinergias resultam da origem dos membros da CPC, designadamente dos Inspectores-Gerais dos Ministérios mais sensíveis nesta área, cuja suspeição a priori é injusta.
É óbvio que o CPC não tem funções injuntivas, nem poderia ter, sob pena de se substituir à Assembleia da República e aos tribunais.
Apenas (aliás, como o Tribunal de Contas na área financeira) pode analisar sistematicamente o fenómeno da corrupção e fazer recomendações à Assembleia da República ou ao Governo de medidas legislativas ou administrativas eficazes para a sua prevenção.
O sucesso do CPC (aliás, como do Tribunal de Contas) residirá no grau de acatamento dessas recomendações."
3 comentários :
Cravinho para cá ,cravinho para lá. Afinal o Orgão criado está m ais além do que por ele preconizado.
Será que os jornalistas portugueses, sabem do que falam, quando comentam sobre a materia? Presumo que não.
Mais conversa de chacha, Miguel. Já descobriu porque é que só é obrigatório o registo das procurações irrevogáveis dos imóveis, ou ainda não?
Isso é que era doce !
Os corruptos a legislarem em prejuízo próprio !
Corruptos sim, estúpidos não !
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