- ‘Sendo em geral um propositado conjunto de banalidades e de propostas de baixo perfil, o programa eleitoral do PSD não pôde, porém, esconder inteiramente o seu projecto de desmantelamento das instituições do Estado social vigentes entre nós, em especial do Serviço Nacional de Saúde.
O programa eleitoral do PSD é caracterizado por dois grandes traços, obviamente deliberados. Por um lado, avulta a vacuidade e generalidade das propostas. Raramente se indicam os meios ou instrumentos para as realizar, nunca se indicam os seus custos orçamentais (incluindo em "despesa fiscal"), que não podem deixar de ser grandes, dada a multiplicidade das medidas avulsas (especialmente de apoios às empresas). De resto, é notória a comprometedora equação financeira deste programa, contradizendo as proclamações de contenção da despesa pública (o que só poderia ser alcançado com cortes noutras áreas, não especificadas).
Por outro lado, é manifesto o esforço de dissimulação no que respeita às mais conspícuas propostas económicas e sociais desde há anos defendidas pelo PSD, na sua fuga para posições crescentemente neoliberais. Não há traço nem sugestão directa de novas privatizações de empresas públicas, nem uma palavra sobre a redução das tarefas do Estado à defesa, segurança e justiça, como há poucos anos defendeu a actual líder laranja. Neste aspecto, o programa não é um "compromisso de verdade", como se auto-intitula, mas sim um exercício de dissimulação, tentando esconder a verdadeira agenda política do PSD.
Todavia, nem sempre isso foi conseguido. Para além da frequente retórica anti-Estado típica do fundamentalismo liberal em matéria de política económica, há a registar a presença das duas grandes alavancas típicas para desmontar o Estado social baseado em serviços públicos universais (segurança social, saúde e educação), a saber, o princípio da subsidiariedade, como regra de delimitação das tarefas do Estado, e o princípio da liberdade de aquisição de serviços públicos no sector privado (que todavia o programa só prevê explicitamente para a saúde). São inequívocas e indesmentíveis as consequências de cada uma dessas propostas.
O princípio da subsidiariedade costuma ser geralmente invocado a propósito da repartição de tarefas na hierarquia das entidades públicas, em caso de multilivelgovernment, estabelecendo que as colectividades territoriais superiores só devem ocupar-se daquelas tarefas públicas que não possam ser adequadamente desempenhadas a nível inferior. Quando transposto para as relações entre o Estado e a "sociedade civil", o princípio da subsidiariedade significa que, por via de regra, as tarefas económicas, sociais, culturais, etc. devem pertencer aos privados ou ao sector social (IPSS etc), só devendo o Estado (lato sensu) intervir em caso de insuficiência daqueles.
É evidente que, à luz de um entendimento mais latitudinário desse princípio, só se justificará a prestação directa de serviços sociais por parte das colectividades públicas (educação, cuidados de saúde, prestações sociais) em relação à parte da população que não possa assegurar a sua aquisição com os seus próprios meios. E, mesmo em relação a esses, sempre se poderá invocai' que nada impõe que seja o Estado a assegurar directamente a sua prestação, através de esquemas públicos (escolas públicas, hospitais públicos, instituições públicas de protecção social), podendo e devendo limitar-se ao papel de financiador desses serviços, obridos no sector privado ou no sector social.
Não é por acaso que o referido programa menciona explicitamente a recondução do papel do Estado na área social às funções de "regulação, financiamento e fiscalização" de prestadores não públicos.
A segunda peça da agenda dissimulada (não inteiramente escondida) do PSD contra o actual modelo de Estado social, aliás constitucionalmente garantido, diz respeito à proposta de liberdade de escolha de prestador de cuidados de saúde "dentro ou fora do sistema público", incumbindo sempre ao Estado o seu pagamento. Trata-se de uma explicitação óbvia do princípio do "Estado financiador", em vez do Estado prestador. Ou seja, o Estado passaria a financiar em geral os consultórios e as clínicas privadas, por simples decisão dos utentes, independentemente de qualquer carência ou deficiência do SNS.
Na impossibilidade política e constitucional de extinguir pura e simplesmente a obrigação do Estado de assegurar o direito à saúde a todos (entregando essa a tarefa aos próprios interessados através de seguros de saúde, à maneira norte-americana), sempre foi esta a principal ambição da direita, pondo o Estado a pagar os seus cuidados de saúde fora do sector público, desobrigando os mais abastados de utilizar o SNS, sem terem de suportar os custos dessa opção.
Independentemente dos enormes custos financeiros de uma tal mudança de paradigma (basta contabilizar o actual volume das despesas da medicina privada que passaria a ser suportado pelo Orçamento), é evidente que se trata à partida de uma via socialmente discriminatória, destinada a beneficiar os titulares de rendimentos elevados, únicos a poderem pagar os custos adicionais da clínica privada, desde logo em hotelaria (que obviamente não poderiam ser cobertos pelo financiamento público).
Acresce que, a curto prazo, um tal mecanismo de financiamento público generalizado de cuidados privados, por simples opção dos utentes, conduziria a transformar o SNS num serviço de segunda ordem para pessoas com menores recursos, desde logo por diminuição do seu financiamento, desviado para custear os cuidados privados, num círculo vicioso cujo resultado só poderia ser uma crescente fuga do SNS.
Nos trinta anos do SNS, é esta a "prenda" que o PSD lhe quer trazer. É certo que nunca tinha morrido de amores por ele, mas acabou por conviver politicamente com ele. Agora, aí está a ameaça, e é a sério. Só os ingénuos podem depois dizer que não perceberam a mensagem.’
1 comentário :
O Vital Moreira vai fazer campanha?! Se sim, a vitória está garantida!!!!
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