Presumo sempre que Isabel Moreira (IM) está de boa fé e tem uma visão afinada sobre os direitos fundamentais. Foi por isso que fiquei surpreendido com a interpretação que faz do artigo 34.º, n.º 4, da Constituição da República. Norma que, segundo IM agora afirma, tem sido torturada por uns e outros. Na falta de procuração de Lomba, pela minha parte posso garantir que não sou nenhum torcionário de normas jurídicas…
O ponto nevrálgico da argumentação de IM diz respeito, simplesmente, ao significado da palavra “ingerência”. IM pensa que a “ingerência” nas comunicações telefónicas se esgotou no acto da intercepção, autorizado por um juiz e praticado pela polícia. Mas é aí que a porca torce o rabo.
Não tenho a pretensão de dar aulas de Teoria do Direito a uma jurista qualificada como IM. Porém, parece-me que, logo no plano estritamente literal, não tem razão. “Ingerência” significa intervenção, intromissão ou interferência e não creio, quod est demonstrandum, que essas expressões, pela sua letra, se referem só à intercepção de comunicações. Então a actividade de gravar as comunicações, de as transcrever, de as resumir, de as consultar, de as valorizar e de as utilizar como meio de prova não é uma “ingerência” nas comunicações? Porquê?
O que me parece inteiramente descabido, aliás, é IM pretender que é preciso recorrer à analogia para qualificar como “ingerência” a utilização abusiva das escutas. A analogia, como IM bem sabe, pressupõe uma lacuna nos termos do artigo 10.º do Código Civil. Pressupõe, segundo o artigo 9.º do mesmo código, que a letra da lei é completamente insusceptível de regular o caso omisso. Ora, um dos significados possíveis da palavra “ingerência” abrange, sem dúvida, a utilização das escutas subsequente à intercepção. Assim, salvo o devido respeito, IM não tem razão.
É claro que, quando a letra da lei é passível de várias interpretações, são outros elementos que devem ser considerados decisivos. Como todos sabemos, trata-se dos elementos histórico, sistemático e teleológico. Ora, todos estes elementos me parecem apontar para uma interpretação do termo “ingerência” que abranja a utilização das escutas. A complexidade das normas que prevêem direitos fundamentais, evocada por IM como argumento (?), só apontam para este entendimento.
A “ingerência” é proibida na Constituição para garantir o direito à reserva da vida privada. Isso explica a génese e a inserção constitucional do artigo 34.º, n.º 4. Também convém articular sempre este artigo com o artigo 32.º, n.º 4, da Constituição, que obriga à intervenção de juiz no processo penal sempre que estiverem em causa direitos fundamentais. Quer dizer, no sistema da Constituição, as escutas (intercepção, gravação, transcrição e utilização) só são possíveis no âmbito do processo penal e desde que autorizadas por juízes. Este enquadramento é o único que garante a efectiva defesa do direito fundamental que o legislador constitucional quis acautelar.
Perante um caso dessa gravidade, não posso deixar de saudar o espírito democrático e a profunda seriedade de Mota Amaral. É nestas situações que se distingue o trigo do joio. Enquanto Pacheco Pereira (que na sua arenga escrita no Público de ontem cobre o seu profundo desprezo pelos valores democráticos com o verniz da erudição grega) teve uma atitude, infelizmente, não surpreendente — foi faccioso, inquisitorial e estalinista —, Mota Amaral confirmou-se como um democrata que não olha a interesses de ocasião, nem faz jeitos a “companheiros”. Pedro Lomba bem poderia inspirar-se neste exemplo para evitar cair em pré-compreensões, ditadas pelos seus preconceitos políticos. Quanto a IM, sei que apenas está em causa, seguramente, aquilo que me atrevo a qualificar como uma má interpretação jurídica.
3 comentários :
Tão claro é o preceito constitucional que admira que tanta divergência de interpretação suscite. De facto, basta atentar no fim que o legislador constitucional pretende acautelar (a reserva da vida privada) para se concluir que a interpretação (restritiva) de Isabel Moreira não tem cabimento.Tendo em conta outros textos da sua autoria,também confesso a minha surpresa. Mas, como diz o outro, há momentos para tudo:para acertar e para errar. No caso dela, este foi o momento de errar.
Ó Miguel, como reforço da sua interpretação extensiva da norma geral está a própria redacção do preceito: nele consta "toda a ingerência", parece-me claro que o termo toda pretende isso mesmo, uma interpretação abrangente do conceito de ingerência! Já tentei questionar a Isabel sobre esta questão mas, até agora sem efeito!! Além do mais está-se a interpretar a norma geral e não a excepção contida na parte final. Essa sim obrigatoriamente sujeita a interpretação restritiva!!!! È que, mesmo em processo penal, apenas alguns crimes - os mais graves - podem justificar a ingerência.
Sousa Mendes
Muito bem. Parabéns.
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