domingo, julho 25, 2010

Para refundar o regime [2]

• São José Almeida, Para refundar o regime (no Público de ontem):
    2. Entrando concretamente na proposta de revisão, percebe-se que ela tem dois grandes eixos de orientação. A introdução de uma liberalização do modelo sócio-económico, com o enterro do Modelo Social Europeu (MSE) no que é o seu figurino clássico do pós-II Grande Guerra, ou seja, abolindo o principio da igualdade de tratamento dada pelo Estado a todos os cidadãos. E a nível político, uma alteração substancial do perfil do sistema, que, passando aparentemente por um aumento dos poderes e das competências do Presidente, é uma diminuição do peso e da influência da primeira figura do Estado, bem como do papel do Parlamento. Representando, de facto, um aumento do poder dos directórios partidários e do peso da partidocracia.

    Vejamos, então. Qual o real significado de mudar o conceito de proibição do "despedimento sem justa causa" - um conceito que tem jurisprudência feita - por uma expressão não-jurídica, como é o de proibição de "despedimento sem razão atendível", mas que autoriza tudo e que sobretudo permite a individualização, caso a caso, das regras sobre despedimento? O que é esta proposta a não ser a tentativa de consagração legal do que tens sido o grande objectivo das aristocracias do poder económico de reduzir os direitos laborais, por forma a ganhar assim a luta de classes de cima para baixo que há décadas se desenha no mundo capitalista e que é ideologicamente enquadrada pelo neoliberalismo?

    Ainda ao nível de abrir caminho para uma mais desigual e menos justa redistribuição da riqueza, acordada no mundo democrático ocidental no pós-II Guerra Mundial, este projecto assume claramente o fim do MSE no que se refere à saúde pública. O PSD pode dizer o que quiser sobre isto. Pode afirmar que está a recriar, a refundar, a reinventar até o Sistema Nacional de Saúde. Mas o que é facto é que a proposta de retirar da Constituição a universalidade do direito à saúde é uma machadada no que é de facto o reconhecimento e garantia pelo Estado de um serviço público de cuidados de saúde igual para todos os cidadãos. E o mesmo faz em relação ao outro pilar do MSE, o ensino público.

    E, atenção, o conceito de igualdade não é aqui confundível com nenhum léxico marxista-leninista. Ele é marxista naquilo que a social-democracia tem de inspiração marxista, mas a igualdade da redistribuição da riqueza é uma regra básica das democracias europeias e do MSE. E sem igualdade não há MSE. Este não pode conviver e conter no seu seio uma divisão dos cidadãos em cidadãos de primeira, que podem aceder a serviços privados, e os cidadãos de segunda que ficam a cargo de um assistencialismo público que nada tem a ver com MSE. Até porque, ao afirmar que o SNS é "tendencialmente gratuito", a Constituição já abre a diferenças de pagamento, dentro do direito igual ao acesso por todos.

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