terça-feira, novembro 27, 2012

À volta do Estado social têm gravitado algumas ideias falsas e poucas soluções práticas — o sector da Saúde

• António Correia de Camos, Reformar ou desmantelar? [ontem no Público]:
    ‘Reformar o Estado social não é sinónimo do seu estrangulamento financeiro com cortes gigantescos e insensatos. Os tão falados quatro mil milhões de euros de redução orçamental que se pretende realizar de uma só vez representam metade do financiamento público da Saúde em Portugal, 25% do total da massa salarial de toda a função pública (…).

    À volta do Estado social têm gravitado algumas ideias falsas e poucas soluções práticas. Limitando esta análise à Saúde, podem confirmar-se várias falsidades.

    A primeira ideia falsa é que a "crise" orçamental actual foi criada pelo crescimento do Estado social. As contas da Saúde publicadas pela OCDE, em Novembro de 2012, desmentem este preconceito, para a década de 2001-2010. A grande maioria dos países daquela organização controlou de forma drástica a subida de gastos com a Saúde, que havia crescido sempre até ao final do século anterior. Alguns países baixaram a despesa pública da Saúde em termos reais e Portugal distinguiu-se nessa contenção. A explicação reside no facto de a maior parte do investimento em hospitais e equipamento médico pesado ter sido realizado ao longo dos anos setenta a dois mil, entrando-se então em regime de manutenção, com acomodação da despesa consentida ao crescimento económico observado.

    A segunda ideia - privatizações do sector da Saúde seriam a melhor forma de baixar o gasto público - sofre de insuficiente ou errado conhecimento do comportamento do "mercado da Saúde". Assentando no preconceito de maior eficiência do privado em relação ao público, também não corresponde à realidade: o mercado na Saúde tem os mesmos ou mais problemas de eficiência que o Estado: elevado risco moral (utilização ineficiente, por excessiva, de bens ou serviços quando o preço de mercado é inferior ao custo), indução da procura pela oferta, assimetrias de informação no consumidor impedindo escolhas racionais, forçando a intervenção de um agente, o médico, que substitui a sua função de utilidade à do verdadeiro utilizador. Não garante competição entre grandes hospitais privados, levando à criação de monopólios, oligopólios ou à cartelização de funções verticais (cuidados primários, meios de diagnóstico convencionados e hospitais, praticando especialização produtiva e segmentação do mercado). Pode ainda gerar efeitos de desnatação da procura, esmagando o sector público remanescente e os parceiros privados mais vulneráveis. Também não garante o desenvolvimento harmonioso da rede de serviços ao longo do território, nem permite a diferenciação positiva de regiões, populações ou patologias.

    A terceira ideia falsa consiste no pretenso valor dos co-pagamentos no ponto de encontro do doente com o sistema, como forma de gerar receita. Não só a receita gerada será apenas simbólica, dado que nenhum sistema pode funcionar sem uma rede social ou de seguro, como se destrói o conceito de solidariedade ou universalidade de acesso, criando barreiras que privariam largas camadas da população de cuidados indispensáveis, afastando os utentes dos serviços numa fase precoce em que o controlo da doença seria mais económico e ampliando externalidades negativas de doenças transmissíveis. Por outro lado, se o critério de assistência for a mera capacidade de pagar, nega-se a universalidade e não se elimina o risco moral, nem a indução da procura pela oferta que levam ao excesso de despesa, tanto privada como pública.

    Uma quarta ideia tem feito algum curso: fragmentar o financiamento através de seguros concorrenciais, de livre escolha do assistido, para o que seria ajudado pelo Estado através de um voucher de valor proporcional ao nível de insuficiência financeira do cidadão. Estaríamos perante um modelo do tipo do usado nos Países Baixos. Não existe experiência nacional nesta matéria, o modelo supõe exigente regulação, e tal como os anteriores modelos privados, não elimina o risco moral, aumenta a discriminação negativa no acesso, levando a que a oferta segmente a procura em função do preço e das condições de pagamento negociadas entre a seguradora e os prestadores. Colocaria público e privado a competirem em produtos que só formalmente têm a mesma natureza. Como é sabido, o produto saúde oferecido pelo privado é vendido sem as servidões inerentes à prestação pública: urgências, ensino e investigação, impossibilidade de encerramento de serviços essenciais, impossibilidade de despedimento de pessoal excedentário, obrigatoriedade de implantação em áreas deprimidas ou de população escassa, entre outras.

    Uma quinta ideia merece mais atenção. A fragmentação da oferta pública através de mecanismos de competição no interior do sistema público, criando formas de aproximação ao mercado concorrencial (quase-mercado). Desde logo, abrindo o acesso dos cidadãos a qualquer serviço de saúde, sem mecanismos de atracção territorial forçada, como já se pratica no acesso das grávidas e crianças a serviços de maternidade ou de pediatria. Depois, prosseguindo a criação de unidades de saúde familiar de livre adesão dos prestadores e utilizadores. Transformando os clássicos serviços de internamento hospitalar em unidades de gestão interna autónoma, autoconstituída e auto-administrada, gerida por sistemas de incentivos ao desempenho. Finalmente, regulando o funcionamento hospitalar de acordo com princípios de competição gerida (managed competitition).’

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