sexta-feira, novembro 29, 2013

A ratoeira
(um artigo que deve ser lido com atenção)

• Pedro Silva Pereira, Meio dever cumprido:
    ‘Ao pedir a fiscalização preventiva da lei de convergência das pensões, num requerimento oportuno mas com parca fundamentação, o Presidente da República cumpriu o seu dever apenas pela metade. Felizmente, o Tribunal Constitucional não está confinado aos argumentos invocados pelo Presidente.

    Apesar de saudado pelos críticos da proposta do Governo, o requerimento do Presidente não deixou de causar alguma perplexidade. Na verdade, toda a argumentação assenta em apenas dois tópicos: em primeiro lugar, o corte coativo, unilateral e definitivo das pensões é um imposto ou, quando muito, uma figura tributária especial ou parafiscal de natureza análoga, pelo que deveria respeitar as regras constitucionais dos impostos (princípios da unidade do imposto sobre o rendimento, da capacidade contributiva, da progressividade, da universalidade e da igualdade), o que não acontece; em segundo lugar, o corte das pensões, produzindo efeitos que configuram uma retroactividade "inautêntica" ou retrospectividade, ofende o princípio da confiança, quando conjugado com o princípio da proporcionalidade.

    A primeira linha de argumentação, embora válida e coerente com anteriores posições do Presidente da República, depara-se com um óbice conhecido: o Tribunal Constitucional já rejeitou a aplicação dos princípios do sistema fiscal ao não considerar inconstitucional a Contribuição Extraordinária de Solidariedade sobre as pensões (apesar de a classificar como "tributo parafiscal"). Quanto à segunda linha de argumentação, se é verdade que o requerimento demonstra que o corte das pensões frustra expectativas legítimas dos cidadãos, fomentadas pelo próprio Estado e ao abrigo das quais os beneficiários fizeram os seus planos de vida, é notório que, no ponto decisivo relativo ao princípio da proporcionalidade (em que se trata de verificar se o sacrifício das expectativas apesar de tudo se impõe por razões justificadas de interesse público e de necessidade, contendo-se dentro dos limites da "proibição do excesso"), o Presidente limita-se a enunciar a necessidade de o Tribunal apurar se tal sacrifício é compatível com um "juízo de proporcionalidade", dispensando-se de apresentar, ele próprio, quaisquer argumentos. O mais que se encontra é a chamada de atenção para o facto de a iniciativa do Governo pretender acelerar a convergência com efeitos imediatos, sem sequer uma regulamentação de transição que permitisse uma redução suficientemente suave ou progressiva, o que suscita de novo a questão da necessidade mas agora quanto ao carácter "súbito" da alteração proposta.

    Ora, conhecendo a jurisprudência anterior do Tribunal Constitucional, além de convocar os princípios constitucionais próprios do sistema fiscal e o princípio da confiança, conjugado com o princípio da proporcionalidade, é óbvio que teria feito todo o sentido invocar a violação autónoma do princípio da igualdade, na sua vertente de igualdade proporcional, já que o que está em causa, antes do mais, é a distribuição injusta dos encargos públicos que decorre do facto de se pretender que sejam os actuais pensionistas da CGA a financiar a sustentabilidade financeira de um sistema cujo desequilíbrio resultou de um vasto conjunto de medidas de política tomadas em benefício de todos os contribuintes e das contas públicas em geral. Do mesmo modo, teria sido útil que o Presidente tivesse sublinhado que, no tal juízo de proporcionalidade e de proibição do excesso, é preciso ter em conta que o corte proposto atinge pensões logo a partir dos 600 euros e afecta pensionistas que estão já onerados por outras gravosas medidas de austeridade. Tal como teria sido pertinente questionar se é legítimo o Governo invocar a necessidade absoluta de uma medida tão gravosa quando ao mesmo tempo declara ter margem orçamental para optar pela redução do IRC para as grandes empresas. Mais: tendo o Presidente argumentado que a proposta do Governo configura um imposto "definitivo", bem que podia ter-se lembrado de tirar todas as consequências desse carácter não transitório do corte das pensões ou, pelo menos, da sua anunciada vigência para lá da situação de excepcionalidade financeira.

    Felizmente, as omissões do Presidente não vinculam ninguém. O facto de o Presidente ter cumprido o seu dever pela metade não impede o Tribunal Constitucional de cumprir o seu dever por inteiro.’

8 comentários :

Anémico disse...



Artigo Excepcional!

Otília Gradim disse...

muito bom!!

Sousa Mendes disse...

É de facto um artigo muito bom!
Todavia nele é mencionada "situação de excepcionalidade financeira" em que vivemos.
Ora não me recordo de ter estudado qualquer situação desta natureza na cadeira de Direito Constitucional ou nas cadeiras de Ciência Política. E, como ouço e leio enunciações de um suposto principio normalmente apregoado por economistas e outros tipos ligados ao sector financeiro que, como sabemos é pouco dado a princípios que não sejam os da protecção dos banqueiros.
Até já ouvi aquele rapaz que escreve programas de governo para vender no Pingo Doce e gosta de se pôr em bicos de pé para falar de economia embora não tenha qualquer formação na área, falar de excepcionalidade financeira.
Ao que me é dado perceber, do enunciado princípio da excepcionalidade financeira , os que o invocam pretendem que em situações de excepcionalidade financeira não se cumpram as normas jurídicas, mormente as normas Constitucionais. Alguém até já falou de suspensão da Constituição!
Uma antiga Ministra, antiga administradora do Banco Santander, falou mesmo de suspensão da democracia por seis meses.
Ocorrem-me sempre algumas perguntas quando oiço estes arautos:
– A excepcionalidade financeira só funciona para atacar os direitos socais ou também funciona para suspender os direitos e apreender os bens dos grandes capitalistas que detêm 95% da nossa economia?
– Suspensas as garantias constitucionais gerais como a igualdade e a proporcionalidade, continuam em vigor as outras garantias e normas jurídicas?
– Quem define as que continuam em vigor e que é preciso cumprir?
– Será que quando se suspende a Constituição seguindo os ensinamentos de Gomes Canotilho, não se está a suspender toda a ordem jurídica?
– Quando se furta num supermercado por se estar com fome ou para dar de comer á família, não se está em situação de excepcionalidade ou melhor de estado de necessidade desculpante?
– Quando se defende a habitação familiar mesmo de armas na mão contra um decisão de expulsão por um credor, normalmente um banco, está-se em situação de estado de necessidade financeira ou é só falta de dinheiro?
Pois é, como diz Canotilho, não são decisões jurídicas são decisões politicas e como tal devem ser tratadas. Ou melhor, como já disse alguém, estamos num PREC do mais reaccionário que existe pelo que qualquer tipo reacção contra este estado de coisas é legítimo.
Até os piquetes de greve da Intersindical ou outros que impeçam os outros de trabalhar que seriam ilegais, se a lei existente não estivesse suspensa com a Constituição.

Evaristo Ferreira disse...

Soberba análise. Tudo esmiuçado, tudo tornado evidente.

Anónimo disse...

Nessa malta...eu não confio em NADA ... prefiro os ciganos da feira do relógio.

O Seguro anda por aí?

Zé da Adega

Anónimo disse...

Pois parece-me que o TC já mostrou o que irá fazer.Aprovará tudo! 7 contra 6...Vai uma aposta?

Unknown disse...

Para corroborar a "constitucionalidade" da lei, temos tb o constitucionalista do PS, Vital Moreira:
http://causa-nossa.blogspot.pt/2013/11/um-pouco-mais-de-prudencia-sff.html
Sexta-feira, 29 de Novembro de 2013




Um pouco mais de prudência, sff


Publicado por Vital Moreira

Surpreende-me a segurança com que tantos leigos em matéria jurídico-constitucional asseguram que o Tribunal Constitucional vai chumbar a convergência do regime de pensões do sector púbico com o regime geral, por alegada violação do princípio da protecção da confiança.
Há, porém, algumas razões para ser cauteloso nesta questão:
- primeiro, tal como qualquer outro princípio jurídico, os princípios constitucionais nunca são absolutos, sendo sempre dotados de uma certa flexibilidade, que dá ao juiz uma margem maior ou menor de liberdade para a sua concretização de acordo com as características de cada situação concreta (como se viu ainda recentemente na decisão do TC sobre o aumento do horário semanal de trabalho da função pública para as 40 horas);
- segundo, no caso concreto, o dito princípio da protecção da confiança tem de se articular, numa tarefa de ponderação prática, com o princípio da igualdade (como se referiu aqui), o qual não tem menos peso do que aquele;
- terceiro, tratando-se de uma medida de fortíssimo impacto orçamental, há um outro princípio constitucional, importado do direito constitucional da UE (e que por isso goza de primazia sobre os princípios do direito constitucional interno), que é o princípio da sustentabilidade orçamental, se se mostrar que não havia medida menos gravosa nem mais equitativa para alcançar os objectivos da redução do défice orçamental a que o País está obrigado.
Tal com na vida, também no direito constitucional nem tudo o que parece é...

Baltazar Correia Garção disse...



Pois, pois. Quando até o Gomes Canotilho, ao despedir-se da cátedra, renega levianamente tudo o que aprendeu e ensinou...