Carta aberta ao ministro da Justiça

Excelentíssimo Senhor:


Deverá V. conhecer a história do menino que quis cortar a cauda ao seu cão, que, quando confrontado no decurso da operação com o sofrimento do bicho, questionou, em visível aflição, o veterinário por que não lhe cortava a cauda aos bocados para aliviar a sua dor, em lugar de o fazer de uma só vez.

Quando V. decidiu reduzir as férias judiciais, cometeu um erro crasso. Como acontece em tribunais de muitos países, não há nenhuma razão objectiva para a existência de um período fixo de férias judiciais. O que seria lógico, e normal, é que os magistrados e os oficiais de justiça gozassem a licença de férias tal como as gozam as pessoas que trabalham. Mas V. transigiu — duplamente, aliás. Depois de ter permitido a continuação das férias judiciais, não as reduziu de dois para um mês, mas limitou-se a cortar 15 dias à prebenda estabelecida. A seguir, ouve-se dizer que não pretende eliminar o subsídio de habitação compensação, mas apenas impedir a sua “actualização” no próximo ano. Alguns media vão fazendo eco de que as intoleráveis regalias dos magistrados jubilados se vão, afinal, manter.

O diálogo é, em si mesmo, um acto comovente — sobretudo, quando patrocinado pela mais alta figura do Estado. Entre parêntesis, estamos a imaginar o estado de comoção em que terão decorrido as audiências em Belém com os representantes das várias corporações da Justiça — o Dr. Sampaio e o Dr. Cluny, por exemplo, tombados um sobre o outro, evidenciando, através de um choro compulsivo, a coincidência de pontos de vista sobre a crise da Justiça (e, bem assim, a excelente articulação entre órgãos de soberania).

Mas a verdade é que V. não pode esquecer-se que, num momento em que se exigem sacrifícios à generalidade dos portugueses, e aos funcionários públicos em particular, os magistrados (judiciais e do Ministério Público) não devem ser tratados como se vivessem em Marte. Tem V. a certeza de que conhece as regalias dos magistrados? Eis algumas que, apesar da opacidade da legislação em vigor, conseguimos descortinar:

1. Os magistrados têm direito a casa mobilada, como se ainda vivêssemos no final dos anos 20 do século passado, quando era problemático descobrir uma habitação condigna nas comarcas de província. Quando não exista casa de habitação mobilada, o magistrado tem direito a um subsídio de habitação compensação no montante de 700 euros.

2. Esta regalia é extensível aos magistrados jubilados, que, caso V. desconheça, vivem em constante stress nos longos passeios que dão pelos jardins públicos (alguns, adicionalmente, cuidam dos netos ou ocupam lugares de destaque nos órgãos da Liga de Futebol Profissional ou, até, vivem agarrados a um computador, para lerem o CC desde há um mês para cá). No caso de magistrados casados (ainda que jubilados), ambos recebem este subsídio (ou um cônjuge usufrui da casa de habitação mobilada e o outro aufere o subsídio).

3. Acresce que o subsídio de habitação compensação está equiparado a ajuda de custo e, embora erradamente, os magistrados entendem que tais rendimentos acessórios não estão sujeitos a tributação de IRS (cf. aqui, aqui e, em especial, aqui), pelo que não os declaram à administração fiscal.

4. Quando em regime de acumulação ou substituição por um período superior a 30 dias, os magistrados têm direito a um acréscimo remuneratório que varia entre 1/5 e 4/5 do montante do vencimento.

5. Os magistrados têm direito também à utilização gratuita de transportes colectivos públicos, terrestres e fluviais, dentro da área da circunscrição. Acontece que os magistrados utilizam esta regalia para os mais diversos (e inconfessados) fins — muito para além da área da circunscrição. Surja V. de surpresa no Alfa de sexta-feira (ou mesmo no de quinta-feira) e, na volta, no de segunda-feira (ou mesmo no de terça-feira) e verá o regabofe que é (na carruagem de 1.ª classe). Tais devaneios são suportados, como julgamos que V. sabe, pelo Orçamento do Estado — logo que a CP apresente a factura.

6. Os magistrados usufruem da assistência médica na saúde proporcionada pelos Serviços Sociais do Ministério da Justiça (SSMJ), para si e para o agregado familiar, apesar de os magistrados só procederem a descontos para a ADSE. Os magistrados têm direito, portanto, aos dois serviços de saúde. Acresce que, independentemente do regime de descontos dos membros do agregado familiar, estes tem direito ao regime dos SSMJ. Os membros do agregado familiar podem, assim, ser beneficiários com plenos direitos dos SSMJ (quando não descontam para outro sistema de saúde) ou então com direitos restritos (quando acumulam os SSMJ e outro sistema de saúde), podendo, neste último caso, beneficiar, claro é, dos dois sistemas.

7. Os juízes têm direito à dedução, para cálculo do IRS, das quantias despendidas com valorização profissional, recorrendo, aliás, a uma interpretação "extensiva" que contraria a doutrina fixada.

8. Os magistrados têm direito a gozo de férias judiciais no continente, acompanhados do respectivo agregado familiar, constituindo as despesas de deslocação relativas às férias de Verão encargo do Estado. Só falta estender tais benesses às férias da Páscoa e do Natal.

9. Acresce que os magistrados têm direito a reembolso das despesas resultantes da deslocação em viatura própria em qualquer transporte público, incluindo as relativas ao transportes do agregado familiar e bagagem, quando promovidos, transferidos ou colocados por motivos de natureza não disciplinar. Acresce a faculdade do recebimento adiantado das necessárias importâncias.

10. Os magistrados têm, ainda, direito a passaporte especial nas deslocações ao estrangeiro.

11. Os magistrados do Ministério Público têm direito a isenção de quaisquer derramas lançadas pelas autarquias locais, norma especialmente interessante quando se prevê que, na sequência da indispensável revisão da Lei das Finanças Locais, os municípios possam vir a criar tributos de natureza local.

12. É concedido aos magistrados um incentivo com vista à sua fixação nas comarcas das regiões autónomas, que actualmente ascende a 574 euros.

13. Quando os magistrados são chamados a prestar um serviço urgente, têm direito a um suplemente remuneratório diário.

Muito mais haveria a dizer — designadamente em relação ao que vem acontecendo nos tribunais superiores (cf. aqui e aqui). Não querendo abusar da paciência de V., esperando embora que os sacrifícios pedidos aos trabalhadores em geral sejam igualmente impostos às corporações da Justiça, queira aceitar, Excelentíssimo Senhor, os protestos da minha mais elevada consideração.

Miguel Abrantes