'Apesar de muito já ter sido dito sobre o tema, o assunto é, para mim incontornável. Refiro-me à notícia divulgada no PÚBLICO há alguns dias sobre a absolvição pelo Supremo de uma responsável de um lar para crianças com deficiências acusada de maus tratos. Não conheço o caso em pormenor, nem sei se a decisão do Supremo é ou não justa, no caso concreto. Não é a decisão que questiono. O que me inquietou – tomando como correctas as citações do acórdão feitas no corpo da dita notícia – foi a argumentação usada pelo Supremo para fundamentar tal decisão:
1. “Umas palmadas (…) no rabo fazem parte da educação.” Pois fazem. Segundo vários estudos conduzidos no nosso país, as palmadas (e, com elas, as bofetadas, os puxões de orelhas, as sovas) são mesmo peça-chave da nossa forma de educar. Um estudo recente que coordenei, conduzido na região Norte, mostra mesmo que actos mais graves (bater causando marcas, dar murros ou pontapés, insultar a criança, dizer-lhe que nunca devia ter nascido) são praticados por cerca de 25 por cento das famílias portuguesas. Bater, às vezes de forma violenta, é comum. Deverá, por causa disso, ser considerado correcto?
2. “Na educação do ser humano justifica-se uma correcção moderada.” Sim. Mas corrigir é necessariamente bater? Não existem outras respostas, tais como a explicação à criança do que fez mal, ou outros castigos, como sejam a perda de privilégios? E, se corrigir é necessariamente bater, porque não corrigimos os nossos delinquentes dessa forma? Serão as nossas crianças mais perigosas do que os internos nos nossos estabelecimentos prisionais?
3. “Cremos que estão postas de parte, no plano científico, as teorias que defendem a abstenção total deste tipo de castigos moderados.” Fiquei contente por saber. Especialmente porque estudo a violência na família há mais de dez anos e ainda não me tinha chegado aos ouvidos que podíamos estar descansados quanto aos efeitos nocivos da punição física. Pelos vistos, toda a polémica entre os que defendem que o bater tem consequências negativas no desenvolvimento infantil, nomeadamente na génese de comportamentos de agressão e hostilidade, e os que defendem a ausência dessas mesmas sequelas está sanada. Porque será então, coisa esquisita, que se continua a escrever e a investigar sobre o tema? E porque será que vários países, tais como a Suécia, baniram o castigo corporal? E porque será que a Recomendação 1666 (2004) do Conselho da Europa considera que os Estados-membros deveriam proibir explicitamente todas as formas de castigo físico?
4. Aparentemente, dar com frequência bofetadas à mesma criança ou fechar uma criança num quarto escuro ou levar a criança a chorar por medo não são maus tratos. Enganados andam os investigadores que recorrentemente tipificam como abusivas condutas desta natureza. Enganado anda quem defende que os castigos, mesmo que físicos, não devem constituir uma prática recorrente nem ser indutores de medo, sob pena de lesar a dignidade infantil e o seu sentimento de aceitação e segurança. Enganado anda quem julgar que tal será particularmente importante com crianças já fragilizadas pela sua deficiência. Em tempos, achava-se que medo era sinónimo de respeito. Pelos visto, há quem continue a achar.
5. Ficamos a saber que qualquer “bom pai de família (…) por uma ou duas vezes (…) dá palmadas no rabo de um filho” ou “dá uma bofetada a um filho”. E que não o fazer é mesmo “um negligenciar educativo”. Muito obrigada ao Supremo por esta contribuição significativa para os estudiosos dos maus tratos. Até agora negligenciar era privar de cuidados, de supervisão, de apoio emocional, de disciplina (entendida como imposição de regras à criança, acompanhadas dos respectivos incentivos e penalizações). Sabemos agora que não bater é comportamento negligente. Cautela, pais que não batem: de ora em diante poderão ter um técnico a bater-vos à porta e a questionar-vos sobre tão negligente conduta!
6. Mas continua a missão esclarecedora do Supremo: tudo isto se refere ao “bom pai de família”. Pobre de mim, que pensava que tal terminologia tinha sido banida dos nossos textos jurídicos e da nossa linguagem técnica! Pelos vistos, o pai de família bate. E a mãe deverá bater também? Ou será tal privilégio do pai? E a mãe, se não bate, o que faz? É batida?
7. O acordo do Supremo faz eco do pensamento do comum dos cidadãos. Daqueles que acham que uma criança que não apanha perde respeito aos pais, que quem não bate não sabe educar e que a porrada nunca fez mal a ninguém. Não é a primeira – nem será a última vez – que um tribunal faz eco do senso comum. Há alguns anos o famoso ”acordo do macho ibérico” também insinuava que as mulheres novas que andam à boleia em plena coutada de tal macho convidam à violação. Não é novidade que um tribunal faça avaliações que ecoam as do “Zé” da esquina. Mas será isto que se pede a um órgão de soberania?'
quinta-feira, abril 20, 2006
Sugestão de leitura - Douto parecer
Carla Machado, professora universitária, escreve hoje um artigo no Público, com o sugestivo título Douto parecer, que nos permitimos reproduzir:
NOTA — Será que o blogue incumbido da resenha das notícias relacionadas com a justiça também vai reproduzir o artigo?
Subscrever:
Enviar feedback
(
Atom
)
8 comentários :
"à notícia divulgada no PÚBLICO há alguns dias sobre a absolvição pelo Supremo de uma responsável de um lar para crianças com deficiências acusada de maus tratos"
ABSOLVIÇÃO...?
É esta a tua resposta à questão num comentário anterior, que, depois de explicada, prometeste dar...?
"Ainda não percebi a tua posição àcerca do SM em relações com crianças, caro Miguel...
Podes explicitar...?"
Também vais dar relevo ao artigo Constança Cunha e Sá, no Público de 14 de Abril, ou a "imparcialidade" do "Miguel" continua nas ruas da amargura...?
Ó Miguel... sai no Público... a senhora até é professora universitária...
Vai daí, temos argumento de autoridade... temos artigo...
Não interessa que a senhora professora esteja a comentar um acórdão que não leu. Que não se deu ao trabalho de ler, pois ele está online para quem o quiser ler.
Ela até pensa que o Supremo absolveu a arguida.
Credo. Só mesmo o Miguel para dar relevo a esta "opinião".
Não posso deixar de concordar com este artigo. O STJ, verdadeiramente, foi infeliz nas suas expressões e nas consequências que essas frases podem despoletar se tomadas descontextualizadamente.
Apesar de, graças a Deus, não ser portador de qualquer deficiência, nem ter sofrido qualquer género de violência ou abuso em casa (dobradas graças a Deus, venho de uma família de classe média-baixa mas feliz), não posso deixar de me recordar da minha educação na escola primária (e parte do ensino básico) que era sobretudo assente nos castigos corporais. Recordo-me ainda hoje de agarrarem-me pelos cabelos e baterem com a minha cabeça no quadro como castigo de errar uma conta; dos inúmeros bofetões que apanhei, da segregação dos meus colegas por não atingirem os níveis desejados (quem não se recorda da "fila dos burros"), dos insultos e humilhações permanentes (burro, estúpido, trolha, inútil, aquele, "sufeca" (sou asmático)) foram mimos que me prodigalizaram na escola primária.
A isto posso acrescentar alguns dos castigos a que colegas meus eram sujeitos em casa, frequentemente por cometerem crimes tão bárbaros como não comer o pão inteiro no recreio - e.g: agarrarem-lhes nas mãos e colocarem numa panela com água quente. Fiz a educação primária numa zona que hoje se poderia chamar de "socialmente excluída".
Será que o outro "blogue incumbido da resenha das notícias relacionadas com a justiça" e no seu enxovalho irá "dar relevo ao artigo Constança Cunha e Sá, no Público de 14 de Abril"?
Sr. anónimo das 03:51:26, lá porque V.Ex.ª fez a educação primária numa zona que hoje se poderia chamar de "socialmente excluída", não queremos que se sinta excluído. Fique! A sua presença neste blogger enriquece o espaço (nosso e) do Miguel
"A sua presença neste blogger enriquece"
A única coisa que "enriquece" aqui é o Miguel, pago para "prestar um serviço" inestimável a certo partido político e ao seu aparelho partidário...
Enviar um comentário