O psiquiatra afirma-se de esquerda e não religioso e apresenta como argumento melhor para votar “não” a existência de uma lei equilibrada que já permite interromper a gravidez nos casos de perigo para a vida ou a saúde da mãe, malformações do feto ou gravidez resultante de um crime contra a liberdade ou a autodeterminação sexual (artigo 142.º do Código Penal). Eurico Figueiredo sublinha que esta lei é idêntica à que vigora na vizinha Espanha, que não é contestada por ninguém.
Esta linha de argumentação é em tudo semelhante à defendida na blogosfera por João Gonçalves e merece uma apreciação séria. João Gonçalves acrescenta um argumento importante que foi muito discutido na Alemanha e já foi usado por Pulido Valente (embora eu não creia que Vasco Pulido Valente vá votar “não” no referendo). O argumento é o de que existem outras prioridades para o Serviço Nacional de Saúde ou, mais radicalmente, a comunidade não ter de suportar os custos da interrupção voluntária de gravidez feita, sem mais, por iniciativa da mulher grávida.
O artigo de Eurico Figueiredo e o post de João Gonçalves suscitam três notas:
1. Comecemos por avaliar o título do próprio artigo de Eurico Figueiredo, que não é uma questão menor. O título é capcioso, porque todos aqueles que vão votar “sim” no referendo reconhecem a “liberdade para não abortar”. Do “sim” no referendo não resultará o aborto obrigatório em caso nenhum e nem sequer um conselho ou recomendação para abortar. Eurico Figueiredo é que não reconhece, votando “não” no referendo, a liberdade para praticar a interrupção voluntária da gravidez. Com coerência lógica, o seu título teria de se chamar “Obrigação de não abortar”.
2. Encaremos agora o equilíbrio da nossa lei. É verdade que o artigo 142.º do Código Penal consagra um sistema de indicações razoável (indicações terapêutica, eugénica e criminológica). E até é verdade que a indicação da saúde pode ser interpretada com generosidade, levando a que, como sucede em Espanha, se considere que não é punível a interrupção voluntária da gravidez praticada por mulher que não queira assumir a maternidade, por se considerar que a imposição dessa maternidade poria em causa a saúde psíquica.
O problema, de que Eurico Figueiredo não tem inteira percepção por ser médico, mas João Gonçalves já terá mais consciência por ser jurista, é que o direito não é apenas a law in books. A lei é também a law in action. E, em Portugal, a indicação de saúde tem sido interpretada com a máxima restrição, o que perpetua o problema de saúde pública do aborto clandestino e o drama humano dos processos judiciais contra mulheres que abortam.
A única forma de contrariar esta tendência é uma alteração legislativa. É mirífico pensar que as mentalidades podem mudar, a curto ou médio prazo, no quadro da mesma lei.
Já aqui afirmei a minha convicção de que o aborto é um mal, mas em certos casos um mal menor. É essa a lógica do próprio artigo 142.º do Código Penal. E é a mesma lógica que se aplica nos casos que agora estão em jogo no referendo, em que há um conflito entre a vida intra-uterina, no primeiro estádio da gravidez, e a liberdade da mulher grávida. A questão não é fácil, mas os resultados insatisfatórios da lei em vigor levam-me a votar “sim”.
Também é verdade que se poderia ter ido por outro caminho. Recorde-se, por exemplo, que, no passado, houve forças politicas portuguesas (o Partido Comunista com a agora convertida à causa do “não” Zita Seabra) que defenderam a consagração de uma indicação económico-social. Na França, foi consagrada, como já referi aqui, uma indicação psicológica. Ambas acabam por dar um resultado prático idêntico ao da resposta afirmativa à pergunta do referendo.
Mas esta resposta assume, sem hipocrisias, o valor da liberdade como um valor conflituante da vida intra-uterina no estádio inicial da gravidez. E, além disso, no referendo, não está em causa a criação de uma nova indicação como a da lei francesa, mas sim a despenalização, por iniciativa da mulher grávida, durante as primeiras dez semanas de gravidez.
3. O último argumento (finalidades e prioridades do Serviço Nacional de Saúde) deve ser encarado com um sentido de solidariedade. A verdade é que o aborto clandestino já levou à morte de muitas mulheres e causou sofrimentos gravíssimos a outras (que vão de problemas psicológicos à esterilidade).
Dar a mulheres que estão num grave conflito existencial a possibilidade de interromperem a gravidez durante as primeiras dez semanas é algo que me parece caber no âmbito do Serviço Nacional de Saúde. A alternativa de considerar o aborto não punível, mas não dar condições médicas para o praticar, não é séria, porque manteria o problema de saúde pública.
Obrigar as mulheres a pagar por essa interrupção voluntária da gravidez fora do Serviço Nacional de Saúde criaria uma gravíssima injustiça social, agravada ainda por o aborto andar frequentemente ligado a situações de exclusão e de carência.
16 comentários :
Sem espinhas!
É o que eu chamo 'a balanced vision of the question'.
Muito bem Miguel Abrantes. O Eurico é bom rapaz mas um tanto lírico. E nem sempre as mede bem. Já o Braga que andou com ele em projectos legislativos, é mais rato de sacristia.
"O psiquiatra afirma-se de esquerda..."
pois, comparado com os da "esquerda" que govetrnam, não é, não
+
Exmo
Parece este post, os "fundamentos" juridicos, que as crianças são sempre entregues às mães em Poder Paternal. E os Homens esmeram-se em articulações sem sentido, e depois admiram-se quando um dia lhes calha a eles.
Respeitosos Cumprimentos.
Afinal ninguem é a favor do aborto, só são contra o facto de as mulheres poderem ir para a prisão...
Vamos ser claros: concordam com o facto de alguem que chama f*d*p a outro ir para a prisão? Parece absurdo, não é? mas a lei estipula que pelo crime de injúrias pode ser aplicada uma pena de prisão.
A pena de prisão não é um fim, nem deve ser o meio mais comum, razão pela qual nunca foi aplicada aos processos de aborto. Mas será que concordam que uma mulher faça impunemente 6, 7, 8 abortos ao longo da vida, como foi recentemente divulgado?
E mais uma questão, às 11 semanas todos os argumentos acerca da liberdade da mulher caem por terra?
Quanto ao mal menor, não acham que morrer é um bocadito "pior" que viver uma suposta vida desgraçada?
Sossega as consciências, mas só isso!
Lisa
Embora muito mais equilibrado e menos fundamentalista do que post(s) anteriores, este texto suscita-me as seguintes dúvidas:
1. Quanto é que de facto vai custar ao SNS assumir o aborto legal até às 10 semanas?
2. Porquê 10 semanas e não 10 semanas e 1 dia?
3. Liberalizar o aborto, sem as hipóteses de avaliação médica ou económica da situação da mãe (e da família…) não será apenas transformá-lo num método anticoncepcional barato e banal?
4. Não seria mais barato apoiar a maternidade/paternidadade, de forma efectiva, para impedir o aborto (não é melhor um crime do liberalizá-lo…)?
5. Não seria mais barata fazer verdadeira educação sexual nas Escolas e Centros de Saúde e tornar mais acessíveis os verdadeiros anticoncepcionais aos homens e mulheres deste país?
Por tudo isto (e acima de tudo, pelo valor da vida humana em si, embora perceba que a vida da mãe possa ser considerada como mais valiosa em caso de necessidade de escolha) é claro que irei votar NÃO…
PS - Já recebeu o e-mail do meu amigo Fernando? Ele disse-me que lho reenviou, pois isto da Internet às vezes prega-nos surpresas…
Corrgindo:
4. Não seria mais barato apoiar a maternidade/paternidadade, de forma efectiva, para impedir o aborto (não é melhor impedir um crime do que liberalizá-lo…)?
A nossa cabeça pensante, intectual, superiormente sabedor, enfim, desconhece, ou finge, com ou sem lei, o aborto vai continuar como sempre existiu, sem lei, as escondidas, não é.
O pior, para uma sociedade é este tipo de proibição, torno-o mais apetitoso e mais desafiador.
Ja aqui escrevi, que devia ser legalizada a droga leve, assim como a prostituição.
Bom, em termos de discussão publica.uma grande parte da população não compreende, por ventura estara incluído o tal psicologo Figueiredo.
O País em 30 e tal anos de discussões publicas, não adiantou rigorosamente nada.
Faz-me confusão, como é que esta intelectualidade, estas cabeças pensadoras, atribui todos os nossos males, sociais, culturais ao Botas da Calçada da Estrela.
Quando veio o 25 de Abril, ainda pensei, apos um período de educação e preparação de quadros que as coisas melhorassem - qual quê, ainda são piores.
O que o Figueiredo, diz é - façam os abortos na curiosa e nas parteiras de vão de escada.
Era o que fazia as prostitutas, mulheres de fracos recursos, empregadas domesticas, catolicas e amantes de gente com dinheiro
Que assim seja
Limpinho
Miguel
Continua abordando lateralidades, sem atacar o essencial: quando nascemos?
Sobre o resto os seguintes comentários:
A nossa lei foi copiada e elogiada pelas Cortes espanholas. Serve lá e não serve cà?
Ou o problema reside no papel, ilegítimo em minha opinão, que as ordens em Portugal possuem. Deixaram de ser apenas um garante de qualidade e lisura dos profissionais, para se intrometerem. pela via da "ética" no comportamento de cada um.
Nesse sentido a posição de Eurico de Figueiredo tem todo o sentido.
Para o SNS o encargo que supõe é mínimo, tendo em conta o número estimado de abortos em Portugal: entre 10 e 30.000/ano. Mesmo a um custo elevado de € 500 e 1.000 por aborto, os custos são pequenos, face aos aumentos em verificados nos gastos com a saúde e com os futuros incrementos, expectáveis, devidos ao envelhecimento geral da população.
Relativamente à questão da solidariedade, não percebo o argumento, porque suportamos os custos decorrentes do consumo de tabaco, ou do gosto pela velocidade (os motards).
Comportamentos de risco pessoal que podem ter consequências muito importantes a nível social.
Qual o argumento que impeça que suportemos comportamentos que não têm essa componente de risco pessoal e social?
Através deste tipo de argumentos não compreendo porque o aborto não possa ser realizado até onde seja medicamente seguro. Nem que o mesmo não seja suportado em parte ou na totalidade pelo SNS. Os recentes casos de maus tratos sobre crianças, algo que não é assim tão invulgar em Portugal, permitem fundamentar o alargamento do prazo do aborto.
Cumprimentos
Adriano Volframista
Legalizar o assassinato - o aborto é isso mesmo - para dar umas massas às clínicas.
Com o apoio, hipócrita, do Estado e, consequetemente, dos contribuintes.
É disso que se trata.
As situações que justificam tirar a vida ao feto estão tipificadas na lei penal geral (incluindo para salvar a vida da mãe, não precisam desta lei imoral.
O resto é treta de gente sem moral para convencer atrasados mentais.
O João Gonçalves é só paleio à flor da pele, mas quando lhe apresentam razões de peso mete a viola no saco.
Pois eu proponho, no caso de ganhar o não, que sejam os companheiros e maridos das mulheres que continuarem a abortar nos vãos de escada e a caír, por causa das sequelas, nas urgências hospitalares, a irem para a cadeia por irresponsabilidade e maus tratos.
Talvez isto levasse uma volta!
Pois eu proponho, no caso de ganhar o não, que sejam os companheiros e maridos das mulheres que continuarem a abortar nos vãos de escada e a caír, por causa das sequelas, nas urgências hospitalares, a irem para a cadeia por irresponsabilidade e maus tratos.
Talvez isto levasse uma volta!
Caro e-konoklasta:
E que tal responder às 5 questões (numeradas) postas anteriormente, visto que ao Miguel não lhe cheira...
As mulheres que abortam são dignamente tratadas nas urgências, tal como qualquer cidadão, desde uma assassino ferido ou um polícia atacado por um assaltante... Aliás os médicos têm um juramento, muito antigo, sobre a protecção da vida humana...
Para ajudar, coloco aqui novamente 5 questões pertinentes, que podem ajudar a decidir o voto no referendo, e a que ninguém, ainda, se atreveu a responder:
1. Quanto é que de facto vai custar ao SNS assumir o aborto legal até às 10 semanas?
2. Porquê 10 semanas e não 10 semanas e 1 dia?
3. Liberalizar o aborto, sem as hipóteses de avaliação médica ou económica da situação da mãe (e da família…) não será apenas transformá-lo num método anticoncepcional barato e banal?
4. Não seria mais barato apoiar a maternidade/paternidadade, de forma efectiva, para impedir o aborto (não é melhor impedir um crime do que liberalizá-lo…)?
5. Não seria mais barato fazer verdadeira educação sexual nas Escolas (como os alunos, nas greves que os Media têm encapotado, exigem...) e Centros de Saúde e tornar mais acessíveis os verdadeiros anticoncepcionais aos homens e mulheres deste país?
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