segunda-feira, janeiro 15, 2007

Mais do mesmo

Mário Pinto, professor da Universidade Católica, critica, no Público de hoje, a decisão do Tribunal Constitucional sobre o referendo. Este adepto do “Não” não se limita a defender o “Não”. Considera que aqueles que defendem o “Sim” no referendo nem sequer deveriam poder exprimir a sua posição.

Depois de uma lenga-lenga intragável, em que a pretensão anda aliada à ignorância jurídica, defende que não deveria haver nenhum referendo, porque aquilo que se está a perguntar é se estamos de acordo com “uma total liberalização do aborto até às dez semanas, por vontade discricionária e incontrolada da mulher grávida”.

É claro que, nesta visão misógina e fundamentalista, a mulher grávida surge como uma emanação de Belzebu, sempre disposta a matar uma nova alma antes de nascer. Apesar dos longos anos de vida, talvez não seja tarde para Mário Pinto aprender que o acto de interromper uma gravidez é um acto doloroso e dramático para a mulher grávida, que ela não toma de ânimo leve.

Mas vamos falar do problema jurídico. O Prof. Mário Pinto, licenciado pela Faculdade de Direito de Coimbra, deveria ter um pouco mais de modéstia nas suas alegações jurídicas. Recomendo-lhe a leitura do que escreveu o Prof. Figueiredo Dias, um verdadeiro mestre de direito penal, no Comentário Conimbricense do Código Penal, a propósito do artigo 142.º. Defende o Prof. Figueiredo Dias que é viável “sem receio do juízo de inconstitucionalidade, um sistema misto de prazo e indicações” [Tomo I, p. 173], tal como aquele que está agora em debate. Ensina o professor de Coimbra que, em geral, não é obrigatório incriminar condutas à luz da Constituição, salvo se a lei prevê expressamente a obrigação de criar um crime (como sucede no artigo 177.º).

Portanto, o Prof. Mário Pinto que reveja as suas afirmações erradas quanto aos seguintes aspectos:

    1. Nem sequer a inviolabilidade da vida humana obriga a considerar crimes todos os atentados contra a vida.

    2. O homicídio é justificado em legítima defesa e conflito de deveres.

    3. Nunca o homicídio e o aborto foram tratados da mesma forma em direito penal.

    4. No caso de aborto não punível durante as primeiras dez semanas, há um efectivo direito que colide com a vida intra-uterina, que é o direito à liberdade (independentemente do valor que o Prof. Mário Pinto lhe atribua).

    5. O valor da liberdade é até mais fácil de perceber do que aquilo que está em causa, no plano axiológico, no caso da “indicação eugénica” (em que se pode interromper a gravidez, até à 24.ª semana, quando já começou a actividade cerebral superior, por haver doença grave ou malformação congénita do feto) [artigo 142.º do Código Penal].

    6. O facto de as mulheres não serem normalmente punidas no caso do aborto consentido prova a má consciência da sociedade. E essa situação é insustentável a prazo, porque o direito penal não serve para saciar as convicções morais de uma parte da sociedade.

    7. É mais do que evidente que o número de interrupções voluntárias da gravidez não sofrerá alterações sensíveis se o “Sim” vencer. O que diminuirá drasticamente será o número de abortos clandestinos, com todo o seu cortejo de mortes e ofensas graves das mulheres grávidas, incluindo a esterilidade (certamente pormenores, na opinião do Prof. Mário Pinto).

    8. Uma sociedade democrática é uma sociedade da dúvida e do respeito pela opinião do outro — e não de certezas dogmáticas e inquisitoriais. É inadmissível que adeptos do “Não” considerem ilegítimo que outros tenham um entendimento diferente e o possam exprimir, ainda por cima quando há um precedente, em que os adeptos do “Não” venceram e os seus opositores, em maioria na Assembleia da República, e, apesar do referendo não ter sido vinculativo, respeitaram o resultado do anterior referendo.

    9. Para que se não confundam conceitos (despenalização, liberalização, justificação, etc.), resta dizer que o que está em causa é a não punição da interrupção da gravidez, nunca uma obrigação de abortar seja em que circunstâncias for, e se protege o direito de objecção dos médicos.

    E é claro que a despenalização está ligada a uma autorização legal de interromper a gravidez em estabelecimentos de saúde, mas não poderia ser de outra maneira, sob pena de se condenar a um risco para a vida ou de ofensa à integridade física grave a mulher grávida.

    10. Os médicos já explicaram bem esta questão, quando perguntaram aos adeptos do “Não” se acham que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) deveria recusar tratamentos aos fumadores que contraiam cancro, aos automobilistas acidentados devido a excesso de velocidade ou até, acrescento eu, a um assaltante que seja ferido ao cometer um roubo.

    De resto, a própria mulher que praticou um aborto clandestino pode recorrer ao SNS para se tratar (quando não o faz é por medo de represálias penais).

Resumindo: um pouco de caridade cristã não faz mal a ninguém, mesmo quando se pensa no SNS.

8 comentários :

Anónimo disse...

A maioria dos defensores do "não" são indefectíveis da Igreja Católica, organização potencialmente antidemocrática. Actuam ao nível da manipulação da consciência dos crentes e desse modo são difíceis de combater dentro dos parâmetros democráticos. O obscurantismo é uma arma terrível nesta emergência,

Anónimo disse...

Como bem diz o Miguel, um pouco de caridade cristã não faz, realmente, mal a ninguém.

Quantos ladrões, ou traficantes de droga, ou contrafactores de marcas, ou vendedores de pirataria musical ou informática, ou fugitivos do fisco ou outros prevaricadores que tais tomam a decisão de delinquir em circunstâncias e por razões dramáticas e dolorosas, designadamente porque não conseguem encontrar outros meios de subsistência de si próprios e de suas famílias ou seus empregados?

E por que misteriosa razão haverão eles de ter um tratamento menos favorável e mais cruel do que as mulheres que, nas mesmas circunstâncias, decidem abortar?

Por que insondável desígnio não ocorre a ninguém propor a despenalização de todos os crimes por aqueles praticados nas ditas mesmíssimas circunstâncias aflitivas e trágicas?

Por que estranha razão o Estado não há-de, ele próprio, substituir-se aos gatunos aflitos, roubando por conta deles ou, pelo menos, fornecendo-lhes todos os meios e logística modernos e adequados para que não arrisquem a vida, de noite, clandestinamente, em perigosos escalamentos, em temerários arrombamentos, no uso insensato de perigosas armas de fogo, em fugas de automóvel suicidas, muitas vezes em locais sórdidos e sem as mínimas condições para se praticar o latrocínio de uma forma minimamente digna?

Acabemos, de vez, com a hipocrisia! Eu, que, por sinal, até tenho uma penhora judicial sobre a minha habitação para pagar uma dívida hipotecária de 50.000 euros, que ganho só 600 euros por mês e tenho que sustentar a minha mulher e 4 filhos, vou ter que, dramática e dolorosamente, vender umas "quartas" de heroína para pagar a dívida, sob pena de arruinar a minha vida e de condenar a minha família à fome e à miséria. Mas exijo que o Estado não só abdique de me perseguir criminalmente, e de me sujeitar ao vexame de um julgamento indigno e ao opróbio de uma condenação, como ainda me passe para a mão os 50.000 euros necessários ao pagamento da dívida - sem o que o recurso ao tráfico clandestino será uma inevitabilidade!

É que, nisto como em tudo, o povo é que tem razão: ou há moralidade ou comem todos!

Anónimo disse...

"Por que insondável desígnio não ocorre a ninguém propor a despenalização de todos os crimes por aqueles praticados nas ditas mesmíssimas circunstâncias aflitivas e trágicas?"

Este anónimo é uma besta !

Anónimo disse...

Parabens Miguel, bem explicado por miudos.

Anónimo disse...

Louçã nunca mais !
Vota “SIM” no aborto !

www.riapa.pt.to

Anónimo disse...

Diz “SIM” à Pena de Morte, diz “SIM” ao Aborto!

Pela sua SEGURANÇA, pela DESCIDA dos ÍNDICES de CRIMINALIDADE !

Abortar por opção, sabendo que já bate o coração de um criminoso ?

As pretas irão fazer fila às portas dos hospitais!


www.riapa.pt.to

Anónimo disse...

Pedir caridade cristã a um católico é quese o mesmo que pedir ao Maomé que apanhe uma barrigada de toucinho. Para os cotólicos "mpenhados" a palavra caridade e afins é instrumental. Normalmente estão bem na vida e reservam para eles o Reino do Céu...

Anónimo disse...

"um pouco de caridade cristã não faz mal a ninguém, mesmo quando se pensa no SNS"

Eu estava a pensar o mesmo - será demais pedir que o SNS salve vidas e dê qualidade às mesmas - tenho uma vizinha, velhota de 80 anos quase cega com cataratas, à espera da intervenção cirúrgica à 3 anos. Será que a "caridade" de resolver os problemas das moças que engravidam e não queriam não vai criar problemas à caridade de resolver os reais problemas de saúde do país...?