quarta-feira, setembro 26, 2007

‘O verdadeiro combate pela liberdade de imprensa começa justamente pelo combate contra a "libertinagem de imprensa"’

O advogado António Marinho e Pinto escreve hoje no Público um artigo intitulado Um cheiro intenso a cadáver. Tendo um amigo feito o favor de mo enviar por e-mail, aqui se reproduz:

    ‘O caso da criança inglesa desaparecida no Algarve levanta importantes questões relacionadas com a nossa investigação criminal e sobretudo com a nossa informação. Ele mostra à saciedade como os maus investigadores criminais e os maus jornalistas andam de mãos dadas; como estão umbilicalmente ligados.

    Numa situação com as dimensões mediáticas que esta atingiu, o pior que pode acontecer à polícia é não apresentar rapidamente resultados - leia-se: culpados.

    Quanto mais se constata a dificuldade do caso ou quanto mais se evidencia a incapacidade da polícia para o solucionar, maiores e mais frequentes são as manchetes em certos jornais, todas indicando explicitamente culpados e, mais do que isso, sugerindo que a polícia nada mais pode fazer devido a poderosas forças de bloqueio.

    Em regra, quando a polícia faz uma investigação bem feita, não aparecem fugas de informação para os jornais, mas sim os resultados finais. Quando a investigação é mal feita ou os investigadores estão num beco sem saída, então todos os dias a todas horas aparecem informações cirúrgicas – sempre absolvendo os investigadores (da incompetência, de ineficácia, da negligência) e quase sempre apontando o dedo a culpados de ocasião.

    A Polícia Judiciária goza de um superavit de credibilidade na sociedade muito superior ao da sua real capacidade investigatória, porque os casos que deslinda são sempre apresentados nos órgãos de informação como grandes sucessos, enquanto os casos que não resolve (ou pura e simplesmente nem chega a investigar) são ignorados pela comunicação social e caem no esquecimento geral. Os insucessos policiais raramente são notícia.

    Quando a polícia apreende algumas toneladas de droga logo monta um espectáculo para as câmaras da televisão, exibindo-as juntamente com uns maços de notas, uns telemóveis e a bandeira da polícia. Quando são apenas alguns quilos, logo os transforma em "centenas de milhar de doses individuais" para o mesmo espectáculo mediático.

    Todas as semanas o país fica a conhecer os grandiosos sucessos da nossa polícia através de uma eficaz máquina de autopropaganda em muito semelhante à que, noutros países, ainda não há muito tempo, anunciava os grandiosos avanços do socialismo. A realidade, essa, como sempre, é que estraga tudo. Por isso há que ocultá-la.

    A PJ, enquanto corporação, gerou interesses próprios e autónomos que em certas circunstâncias entram em contradição com as suas finalidades legais. Em alguns momentos dá a impressão que funciona como um estado dentro do Estado. Ainda há semanas, um alto responsável da PJ prestava declarações à imprensa em pose de Estado, com a bandeira da corporação ao lado, como se fosse o Presidente da República ou o primeiro-ministro em comunicação ao país.

    Por isso é que casos como os da Madeleine ou da Joana obrigam as polícias a apresentar rapidamente culpados sob pena de a sua credibilidade se ir desmoronando a cada dia de atraso. Nestes casos, à medida que se verifica a ineficiência da investigação criminal, evidencia-se também a sua gigantesca capacidade de autopropaganda. É chocante a disponibilidade de certos órgãos de informação para acolher e publicitar essa propaganda.

    Os maus polícias e os maus jornalistas são aliados naturais. Precisam uns dos outros como os parasitas do hospedeiro. Sem os maus jornalistas, aqueles polícias nunca conseguiriam ver as suas opiniões e conjecturas noticiadas a coberto do anonimato e seriam mais vezes responsabilizados pela sua ineficácia. Sem os maus polícias aqueles jornalistas teriam de fazer uma verdadeira investigação dos factos e nunca conseguiriam as manchetes sensacionalistas com que permanentemente intoxicam a opinião pública. Assim, como as coisas estão, esses jornalistas não fazem qualquer investigação digna desse nome; limitam-se a uns telefonemas para as fontes habituais – os mesmos polícias de sempre, ou seja, geralmente indivíduos profissionalmente desqualificadas, rancorosos, megalómanos ou mesmo mitómanos, os quais tecem algumas conjecturas ou insinuações sem qualquer fundamento real, mas que os ditos jornalistas logo transformam em gloriosas e assertivas manchetes.

    Tradicionalmente, a generalidade dos órgãos informação portugueses nutria um considerável respeito pelos direitos pessoais, nomeadamente, pela privacidade. O caso Maddie mostrou que uma parte da nossa imprensa assimilou em definitivo o que de pior existe na comunicação social britânica, ou seja, aquele execrãvel "tabloidismo", que não tem a mais vaga consideração pela dignidade da pessoa humana nem qualquer compromisso com a deontologia jornalística.

    O resultado está à vista: paira no ar um intenso cheiro a cadáver. E não é o da criança desaparecida. É o cadáver da presunção de inocência; é o cadáver do dever jornalístico de ouvir todas as partes com interesses atendíveis. É o cadáver do segredo de justiça. Todos já em adiantado estado de decomposição.

    Felizmente que, por entre os miasmas da putrefacção, ainda vai havendo quem resista e procure noticiar com rigor os factos que vai investigando autonomamente. Felizmente ainda há profissionais que se recusam a fazer um jornalismo obsequioso em relação a polícias incompetentes. Felizmente que ainda há jornalistas que se recusam a apresentar como factos incontroversos as opiniões ressabiadas de "informadores anónimos.

    É altura de aqueles que em Portugal lutam a sério pelo direito de informar saírem do silêncio a que se remeteram. É que o verdadeiro combate pela liberdade de imprensa começa justamente pelo combate contra a "libertinagem de imprensa".’

2 comentários :

Anónimo disse...

Já estou a ficar velho ou então estou em maré de azar. Não paro de engolir sapos, ultimamente. Não gosto deste advogado, nunca gostei. Mas, que me senti bem a ler o que ele escreveu, não há dúvida nenhuma. Palavras? Para quê! Só iriam estragar uma peça que atingiu em cheio os seus destinatários.

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Latedo

Anónimo disse...

Grande Marinho. Admiro a coragem, a frontalidade,sem vassalagem deste grande Srº.
Completamente de acordo com o diagnostico.