“Não me parece exigível uma aplicação retroactiva da nova lei a não ser que se suscite uma dúvida inultrapassável sobre se, em concreto, o material destruído poderia ser a peça do puzzle que iria altera o significado dos factos. Este entendimento torna excessivo um juízo de inconstitucionalidade sobre todo e qualquer caso de destruição de escutas irrelevantes segundo o regime antigo.
Só é obrigatória a aplicação retroactiva da lei penal concretamente mais favorável. Uma aplicação retroactiva do novo regime sem averiguação do prejuízo para a defesa da destruição de escutas ignoraria a prova bem produzida e poria em causa a realização da Justiça.”
“Os cândidos terão pensado que, em 1974, o corporativismo descia à cova com o Estado que se dizia corporativo. Mas só mesmo os cândidos. Porque a vontade, indisputada e arbitrária, de Salazar nunca permitiu às corporações serem mais do que um álibi doutrinário para substituição da democracia representativa. Uma Câmara Corporativa de "notáveis" de nomeação nunca foi engulho que se visse. O juízo pessoal do ditador - beato, paternalista e campónio - sempre se impôs aos pareceres dela (que, de resto, as mais das vezes, já provinham de encomendas do poder). Por isso, o corporativismo, que então não chegou a existir, só viu a luz com as liberdades democráticas. Bem nos podemos orgulhar desta nossa abertura de espírito.
A Ordem dos Médicos já não era excepção. (…) Só não era adivinhável até onde iria ainda a sobranceria corporativa. Ao ponto de recusar acolher, no Código Deontológico, as alterações que a lei geral vai registando, mesmo que por vontade testada em referendo e imposta por lei da Assembleia. O primado da lei esbarra assim num curioso entendimento. O de que, por um lado, uma norma, por contrária que seja a outra que lhe é superior, pode até ser reafirmada, desde que quem a deve aplicar jure, por uma saudinha qualquer, que não a aplicará; e, por outro, o de que o código é dos médicos, pelo que só por vontade deles - ou mesmo só a dos objectores de consciência que a lei respeitou - se fará a conformação dos seus preceitos à legalidade (ainda que as prerrogativas da associação profissional lhe sejam conferidas por lei e tenham a natureza de um mandato colectivo). E se assim o não entende a Procuradoria-Geral da República, tanto pior para ela. Que sabem os procuradores de Hipócrates, se eles são formados em Direito.”
2 comentários :
Mais um artigo de opinião do Sr.N.B.Santos, no DN, cheio de verdade e oportuno. Muitas das maletas da nossa sociedade são devidas à presença de forças corporativas, que ao longo dos anos tem "obrigado" o poder politica a cerder em seu favor.
Chegou a hora de por estes malfeitores do nossa sociedade no seu lugar.
O culpado é um gajo chamado Hipócrates, que criou um certo juramento. Agora os doutores pensam que podem decidir o que é eticamente correcto para a sua profissão - ai os malandros!
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