quarta-feira, agosto 20, 2008

Contradições flagrantes na fundamentação do veto de Cavaco




Dei-me ao trabalho de ler a fundamentação do veto do Presidente da República ao novo regime do divórcio e não pude deixar de notar algumas contradições flagrantes:
    1. Cavaco Silva justifica o seu veto com a necessidade de proteger o cônjuge que se encontra numa situação “mais fraca” ou “mais débil”, “geralmente a mulher”, mas não explica a que se deve essa fraqueza ou debilidade. Pelo resto da mensagem, percebe-se que está a pensar numa debilidade ou mesmo dependência financeira da mulher face ao marido.

    Ou seja, o Presidente recusa-se a facilitar o divórcio de quem já não ama o cônjuge. A razão que invoca para tal é, no fundo, uma razão financeira, uma questão de pena por quem ganha menos ou tem menos património para se sustentar sozinho — o que não faz sentido, diga-se de passagem, já que, quanto muito, o desequilíbrio financeiro entre cônjuges ou ex-cônjuges deve ser aferido para efeitos de uma eventual prestação de alimentos, mas nunca para forçar alguém a permanecer numa relação em que já não se sente feliz.

    De todo o modo, o que pretendo salientar é que este argumento se encontra em franca e aberta contradição com uma outra passagem da mensagem do Presidente, em que este critica a suposta “visão contabilística do matrimónio” que a nova lei encerraria. Ou seja:

      • Por um lado, o Presidente afirma-se contra uma “visão contabilística do casamento”;
      • Por outro lado, considera que o divórcio culposo deve manter-se para “salvaguardar o poder negocial” [sic] de um dos cônjuges contra o outro.

    2. O fundamento de protecção da “parte mais fraca” utilizado pelo Presidente espelha, supostamente, uma postura igualitária, eventualmente até de discriminação positiva, enfim, uma visão do casamento que integra os valores — mais modernos e hodiernamente sacralizados — da igualdade.

    Na verdade, esconde uma visão totalmente retrógrada e antiquada das relações matrimoniais. O que, refira-se de passagem, vem na sequência de outros vetos presidenciais também moralmente conservadores, demonstrativos de uma visão ultrapassada do mundo e impregnados de uma férrea vontade em perpetuar uma organização social moldada em termos que, entretanto, se tornaram obsoletos — como já sucedeu com o veto à lei da paridade.

    3. Por fim, o exemplo da violência doméstica, constante da mensagem presidencial, é totalmente ridículo e descabido. O Presidente invoca que, com o novo regime, o agressor pode retirar vantagens, como a possibilidade de obter o divórcio independentemente da vontade da vítima.

    Ora, este exemplo padece de dois problemas. Primeiro, a violência doméstica tem consagração como crime e é nessa sede que deve ser punida, não em matéria de divórcio.

    Segundo, a ideia que o Presidente parece querer transmitir é a de que a dificuldade na obtenção do divórcio deveria funcionar como uma espécie de sanção para as agressões perpetradas. Do género: “Bateste no cônjuge? Então, como paga, agora ficas agarrado ao casamento e daqui não podes sair!”.

    Ora, a mim parece-me que — bem pelo contrário — quem reiteradamente agride o cônjuge deveria provavelmente ser afastado do casamento e não forçado a nele permanecer. Qual o interesse em dificultar o divórcio a quem bate no cônjuge? Cheira-me que Cavaco Silva gosta muito daquela música da Dora: “quanto mais me bates, mais eu gosto de ti…”

5 comentários :

Anónimo disse...

hum... e porque não consagrar também o contrário do que é proposto no novo regime, dando opção aos cônjuges de escolherem, caso assim o entendam, que o casamento seja perpétuo...dava-se uma tónica mais positiva ao regime e permitia-se um verdadeiro exercício de liberdade por parte dos futuros cônjuges... como se sabe, por mais estranho que pareça, existem casamentos que duram uma vida inteira...

Anónimo disse...

Pois é, Miguel, até me vou repetir e deixar um comentário que já fiz no 5dias, a um post do LR.

Gosto à brava da especificação de “veto político”. Para além da posição hipócrita da defesa de uma paz podre, nomeadamente no que à violência doméstica diz respeito - recordo que há mecanismos legais próprios para esta situação e que, se alguma coisa há a fazer em benefício das vítimas deste terrível flagelo que já matou, só este ano, cerca de três dezenas de mulheres em Portugal, não é, seguramente, contribuir “indirectamente” para a sua perpetuação -, a alegada mais valia pecuniária que a legislação agora vetada determina é uma verdadeira chalaça. Não tenho nada a ver com as razões que cada um tem para decidir casar-se, não são da minha conta, mas a verdade é que as motivações “contabilistico-economicistas” que por vezes determinam um casamento não são acauteladas - bem pelo contrário, são reforçadas - com o actual estado da arte e, por outro lado, tais motivações não excluem, de per si, a existência de uma relação afectiva plena. Cada um se casa pelas razões que entende e, assim sendo, deve assumir as consequências dessas motivações, incluindo ter decidido fazer do casamento um meio de subsistência ou um acréscimo pecuniário de monta.

Mas, a bem dizer, a justificação mais fantástica é a seguinte: “Nos termos do diploma é possível ao marido, após anos de faltas reiteradas aos deveres de respeito, de fidelidade ou de assistência, exigir ainda da sua ex-mulher o pagamento de montantes financeiros.”. Ah país de mulheres “sérias”, defendidas (??) por paternalismos de caca.

Anónimo disse...

Lapidar, contundente, até. Um golpe seco, este post. Muito bom, MIguel. É isso aí.

Obrigado pela sua leitura.

Edie Falco

Anónimo disse...

Quem votou neste cromo que o ature... uma vergonha, esta figurinha...

Anónimo disse...

Pelo nível dos comentários, podemos inferir a estatura cívica dos respectivos comentadores.

Indigentes, quase sem excepção !