quarta-feira, maio 20, 2009

Bloco central como "uma impossibilidade política prática"

• Vital Moreira, Impossível parceria (Público de ontem):
    «Alguém escrevia há dias que, não fosse a incompatibilidade pessoal entre os actuais líderes do PS e do PSD, uma hipotética coligação governativa entre ambos os partidos - caso o PS não renove a maioria parlamentar em Outubro - não seria muito difícil, por serem facilmente resolúveis as poucas diferenças políticas entre ambos. Nada mais longe da realidade, porém. Há muito que o fosso entre os dois partidos de governo nacionais não cessa de se alargar.

    A tese da convergência política dos dois partidos baseia-se na visão esquerdista - explorada pelo PCP e pelo BE - de que, sob a liderança de Sócrates, o PS se deslocou "para o centro", estreitando desse modo a distância para o PSD. Só que, para além de essa premissa não corresponder aos factos - pois este Governo não deixou os seus créditos de esquerda por mãos alheias, desde a despenalização do aborto à reabilitação da escola pública, desde a "lei da paridade" ao estabelecimento do suplemento de rendimento para pensionistas pobres e à nova geração de direitos sociais (só para citar alguns exemplos) -, o que é incontestável é a deriva do PSD para a direita neoliberal e neoconservadora, abandonando a sua antiga dimensão modernizadora, reformista e social.

    O aumento da distância política entre os dois maiores partidos é evidente em todos os planos. No plano da política económica, basta assinalar a diferença quanto ao papel do Estado no investimento e na dinamização do crescimento e do emprego, que se tornou notória no início da actual recessão, quando o Governo apostou resolutamente no investimento público para compensar a quebra do investimento privado e para travar o crescimento do desemprego, enquanto o PSD propôs que a folga orçamental disponível fosse aproveitada para baixar impostos, o que deixaria o Estado desarmado para responder à crise. No plano da política fiscal, enquanto o PS se mantém fiel à visão social-democrata de que um Estado social forte precisa de um sistema fiscal robusto e progressivo, o PSD deu em militar obsessivamente pela redução dos impostos, como é típico da visão neoliberal, para desse modo favorecer os grupos sociais mais abastados e "secar" o financiamento público dos encargos sociais. No plano das políticas sociais, enquanto o PS busca assegurar a sustentabilidade financeira dos grandes pilares do "Estado social" (sistemas públicos de segurança social, de saúde e de ensino), já o PSD, pelo contrário, não esconde a sua opção pela privatização dos grandes serviços sociais, reduzindo o Estado ao papel de financiador e regulador de sistemas privados de segurança social, de saúde e de ensino.

    Como seria possível a coabitação de concepções políticas tão distintas num mesmo governo?

    Não menos marcantes, antes pelo contrário, são as diferenças relativas à autonomia e à liberdade de opção individual, por exemplo em matéria de despenalização do aborto, de divórcio, de procriação medicamente assistida, de direitos dos homossexuais, tudo matérias que colhem o apoio político do PS, mas em que a deriva neoconservadora do PSD o impele inapelavelmente para a rejeição. A declaração de Manuela Ferreira Leite, segundo a qual "a missão do casamento é a procriação", resume bem o atavismo e o arcaísmo das posições do PSD nesta área. Como seria concebível conciliar visões doutrinárias tão opostas num mesmo governo? Mesmo que as diferenças políticas e ideológicas não fossem tão evidentes, há um incontornável obstáculo adicional, que tem a ver com a deplorável inconsistência e inconstância que se apossou do PSD, tornando-o um partido politicamente imprevisível e pouco fiável.

    Por um lado, o PSD sofisticou a sua congénita aptidão para a versatilidade política, variando de posição consoante os interesses em presença. Alegadamente "social-democrata" para uso interno, optou por se integrar no Partido Popular Europeu, que reúne a direita liberal e conservadora europeia, não enjeitando a comprometedora companhia da direita ultraliberal do Leste europeu e da direita mais populista (como a de Berlusconi, na Itália). Reivindicando-se em geral da tradição liberal-social europeia, o PSD não tem problemas em "geminar-se" politicamente com o Partido Republicano norte-americano, farol no neoliberalismo e do neoconservadorismo. Centralista e inimigo da descentralização regional em Lisboa, o PSD é a favor da regionalização no Porto e em Faro. Inimigo das "grandes obras públicas" em Lisboa, o PSD é a favor em todo o lado onde elas causam impactos positivos.

    Por outro lado, o PSD deixou de ser um partido dotado de um mínimo de previsibilidade e de fiabilidade. Ao longo desta legislatura rompeu dois acordos políticos estabelecidos com o PS, o pacto sobre a justiça e o acordo sobre o sistema eleitoral das autarquias locais. Depois de há poucos anos ter considerado "estratégico para o país" o projecto da alta velocidade ferroviária (TGV) e de o ter acordado as ligações transfronteiriças com a Espanha, o PSD veio recentemente "riscar" politicamente o projecto e rasgar esse compromisso internacional. A falta de consistência política e doutrinária (a que alguns chamariam irresponsabilidade política) permite que cada mudança de liderança (e com que velocidade o PSD muda de líder!) ponha em causa tudo o que defendera antes.

    Nestas circunstâncias, que estabilidade poderia ter um acordo governamental com o PSD, caso não fosse impossível por outros motivos?

    Portugal precisa de alternativas políticas claras e consistentes e de estabilidade e responsabilidade política. O PSD não está em condições de contribuir nem para umas nem para outras. Nas actuais circunstâncias - se é que poderia ser viável alguma vez em abstracto -, a reedição do chamado "bloco central" como solução de governo é, antes de mais, uma impossibilidade política prática.»

1 comentário :

praianorte disse...

SE MAIS RAZÕES HÁ PARA RECUSAR O CENTRÃO, ESTAS SÃO SUFICIENTES PAR SEPARA O TRIGO DO JOIO.