Notas sobre um despacho de arquivamento que suscitou muitos comentários de reprovação Ocaso que se passa a relatar tem sido muito comentado em blogues e não só, dado consagrar um entendimento da liberdade de expressão não muito vulgar ou habitual nas nossas autoridades judiciárias, nomeadamente no Ministério Público.Um qualquer procurador da República adjunto foi, no passado dia 27 de Fevereiro de 2009, interceptado pela polícia, no Seixal, enquanto conduzia o seu automóvel e, em simultâneo, falava ao telemóvel. O agente de autoridade elaborou o respectivo auto de contra-ordenação, que não foi assinado pelo infractor (o magistrado), que se recusou a fazê-lo. Entendeu o agente da PSP comunicar à sua chefia o que disse o magistrado no momento em que foi interceptado, destacando as seguintes frases: "Eu não pago nada, apreenda-me tudo... Caralho, estou a divorciar-me, já tenho problemas que cheguem... Não gosto nada de identificar-me com este cartão, mas sou procurador... Não pago e não assino ... Ai você quer vingança, então o agente Frederico ainda vai ouvir falar de mim. Quero a sua identificação e o seu local de trabalho." O assunto chegou à Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa para apreciação e foi entregue ao procurador da República adjunto João Manuel Parracho Tavares Coelho. Depois de ponderar devidamente o assunto, este magistrado decidiu, no passado dia 1 de Abril, proferir despacho de arquivamento do processo quer porque, segundo concluiu, não havia matéria para procedimento criminal, quer porque o comportamento em causa não constituía infracção disciplinar. Embora aceitando "que é exigível a todos os cidadãos uma postura de colaboração e de urbanidade para com os agentes de autoridade no exercício de funções", considerou o magistrado Tavares Coelho que as expressões utilizadas e proferidas pelo autuado magistrado só se podem ter como "desabafos" de quem foi surpreendido a infringir o Código da Estrada e nunca como intencionalmente utilizadas para ofender a honra do agente de autoridade autuante, acrescentando: "Por outro lado, o vocábulo 'caralho' utilizado, não obstante integrar um termo português de calão grosseiro, como se apreciou, foi proferido como desabafo e não como injúria (...)." Ou seja, o autor da expressão "desabafou" sem que se tenha dirigido ao autuante o epíteto, chamando-o ou sequer tratando-o por "Caralho". Na gíria popular, considerado o contexto e as circunstâncias (pendendo divórcio e tendo já problemas, fica aceite uma fase de perturbação do autuado), tal expressão equivale a dizer-se, desabafando "caralho, estou lixado". E quanto à afirmação "Ai você quer vingança, então o agente F. ainda vai ouvir falar de mim", considerou o magistrado arquivador do processo que a mesma não continha "qualquer ameaça, ainda que velada ou insinuante, pois que a frase não encerra qualquer promessa de um mal futuro que determine que o destinatário se possa considerar perturbado na sua livre circulação, passando a recear a concretização de que algum mal lhe suceda, como 'prometido'". E concluiu, por fim, que "também o facto de o magistrado ter pedido a identificação do agente autuante não traduz qualquer ilícito, pois que consubstancia até um direito". Sendo certo que este despacho de arquivamento tem levantado, no seio da comunidade judiciária e não só, muitos comentários de reprovação por se considerar que o mesmo evidencia um manifesto corporativismo, a verdade é que o aspecto chocante do despacho não é ter concluído pela inexistência de crime - na verdade, a falta de educação, a ordinarice ou a pesporrência de um magistrado não podem ser classificados como crime -, mas o facto de se ter afirmado não existir qualquer infracção disciplinar neste comportamento de um magistrado. Fala-se regularmente na crise da justiça, nomeadamente por causa da lentidão processual ou das fugas de informação nos processos em segredo de justiça, mas seria bom lembrar que o descrédito da justiça se constrói lentamente com a falta de educação, os comportamentos arrogantes, se não mesmo idiotas, de alguns operadores judiciários. O que choca neste caso, como em outros em que magistrados se esquecem de que estão ao serviço dos cidadãos, é o triste comportamento de alguém que deveria agir, se não de forma exemplar, pelo menos de forma decente, evitando ser um manual de actuações "lamentáveis": não falando da infracção ao Código da Estrada em si, que não será das mais graves, temos a utilização do "calão grosseiro", a recusa de pagamento da multa e de assinatura do próprio auto (!), a desnecessária utilização do cartão de identificação como magistrado, a classificação da actuação do agente da PSP ao cumprir o seu dever como "querendo vingança" e, por fim, a "ameaça" de que o agente iria ouvir falar dele procurador, solicitando-lhe para o efeito a identificação e o local de trabalho. Toda esta actuação da parte de um magistrado para com um agente da polícia é, no mínimo, profundamente reprovável, ética e deontologicamente, como qualquer cidadão normal convirá. E é por isso que, ainda mais grave do que esta actuação do magistrado que ia ao telefone e vivia o stress do divórcio, é a actuação do outro magistrado que, presumimos, não estará a viver um processo de divórcio e que considerou, unicamente, que da parte do colega "houve falta de correcção na linguagem proferida". É a rebaldaria institucionalizada
1 comentário :
Uma mão lava a outra
Francisco Teixeira da Mota
Notas sobre um despacho de arquivamento que suscitou muitos comentários de
reprovação
Ocaso que se passa a relatar tem sido muito comentado em blogues e não só, dado
consagrar um entendimento da liberdade de expressão não muito vulgar ou habitual
nas nossas autoridades judiciárias, nomeadamente no Ministério Público.Um
qualquer procurador da República adjunto foi, no passado dia 27 de Fevereiro de
2009, interceptado pela polícia, no Seixal, enquanto conduzia o seu automóvel e,
em simultâneo, falava ao telemóvel.
O agente de autoridade elaborou o respectivo auto de contra-ordenação, que não
foi assinado pelo infractor (o magistrado), que se recusou a fazê-lo. Entendeu o
agente da PSP comunicar à sua chefia o que disse o magistrado no momento em que
foi interceptado, destacando as seguintes frases: "Eu não pago nada, apreenda-me
tudo... Caralho, estou a divorciar-me, já tenho problemas que cheguem... Não
gosto nada de identificar-me com este cartão, mas sou procurador... Não pago e
não assino ... Ai você quer vingança, então o agente Frederico ainda vai ouvir
falar de mim. Quero a sua identificação e o seu local de trabalho."
O assunto chegou à Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa para apreciação e foi
entregue ao procurador da República adjunto João Manuel Parracho Tavares Coelho.
Depois de ponderar devidamente o assunto, este magistrado decidiu, no passado
dia 1 de Abril, proferir despacho de arquivamento do processo quer porque,
segundo concluiu, não havia matéria para procedimento criminal, quer porque o
comportamento em causa não constituía infracção disciplinar.
Embora aceitando "que é exigível a todos os cidadãos uma postura de colaboração
e de urbanidade para com os agentes de autoridade no exercício de funções",
considerou o magistrado Tavares Coelho que as expressões utilizadas e proferidas
pelo autuado magistrado só se podem ter como "desabafos" de quem foi
surpreendido a infringir o Código da Estrada e nunca como intencionalmente
utilizadas para ofender a honra do agente de autoridade autuante, acrescentando:
"Por outro lado, o vocábulo 'caralho' utilizado, não obstante integrar um termo
português de calão grosseiro, como se apreciou, foi proferido como desabafo e
não como injúria (...)." Ou seja, o autor da expressão "desabafou" sem que se
tenha dirigido ao autuante o epíteto, chamando-o ou sequer tratando-o por
"Caralho". Na gíria popular, considerado o contexto e as circunstâncias
(pendendo divórcio e tendo já problemas, fica aceite uma fase de perturbação do
autuado), tal expressão equivale a dizer-se, desabafando "caralho, estou
lixado". E quanto à afirmação "Ai você quer vingança, então o agente F. ainda
vai ouvir falar de mim", considerou o magistrado arquivador do processo que a
mesma não continha "qualquer ameaça, ainda que velada ou insinuante, pois que a
frase não encerra qualquer promessa de um mal futuro que determine que o
destinatário se possa considerar perturbado na sua livre circulação, passando a
recear a concretização de que algum mal lhe suceda, como 'prometido'". E
concluiu, por fim, que "também o facto de o magistrado ter pedido a
identificação do agente autuante não traduz qualquer ilícito, pois que
consubstancia até um direito".
Sendo certo que este despacho de arquivamento tem levantado, no seio da
comunidade judiciária e não só, muitos comentários de reprovação por se
considerar que o mesmo evidencia um manifesto corporativismo, a verdade é que o
aspecto chocante do despacho não é ter concluído pela inexistência de crime - na
verdade, a falta de educação, a ordinarice ou a pesporrência de um magistrado
não podem ser classificados como crime -, mas o facto de se ter afirmado não
existir qualquer infracção disciplinar neste comportamento de um magistrado.
Fala-se regularmente na crise da justiça, nomeadamente por causa da lentidão
processual ou das fugas de informação nos processos em segredo de justiça, mas
seria bom lembrar que o descrédito da justiça se constrói lentamente com a falta
de educação, os comportamentos arrogantes, se não mesmo idiotas, de alguns
operadores judiciários.
O que choca neste caso, como em outros em que magistrados se esquecem de que
estão ao serviço dos cidadãos, é o triste comportamento de alguém que deveria
agir, se não de forma exemplar, pelo menos de forma decente, evitando ser um
manual de actuações "lamentáveis": não falando da infracção ao Código da Estrada
em si, que não será das mais graves, temos a utilização do "calão grosseiro", a
recusa de pagamento da multa e de assinatura do próprio auto (!), a
desnecessária utilização do cartão de identificação como magistrado, a
classificação da actuação do agente da PSP ao cumprir o seu dever como "querendo
vingança" e, por fim, a "ameaça" de que o agente iria ouvir falar dele
procurador, solicitando-lhe para o efeito a identificação e o local de trabalho.
Toda esta actuação da parte de um magistrado para com um agente da polícia é, no
mínimo, profundamente reprovável, ética e deontologicamente, como qualquer
cidadão normal convirá. E é por isso que, ainda mais grave do que esta actuação
do magistrado que ia ao telefone e vivia o stress do divórcio, é a actuação do
outro magistrado que, presumimos, não estará a viver um processo de divórcio e
que considerou, unicamente, que da parte do colega "houve falta de correcção na
linguagem proferida". É a rebaldaria institucionalizada
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