terça-feira, março 09, 2010

Após ter lido o relatório da OCDE, fica uma dúvida: os que o comentaram também leram?

Na semana passada fez furor um relatório da OCDE sobre a mobilidade salarial, que mereceu uma notícia aqui, e que dava conta — na opinião de alguns comentadores (por exemplo, aqui, aqui e aqui) — da alegada incapacidade da escola (pública, pois claro!) para contrariar as desigualdades de partida entre famílias e jovens. Fui dar uma vista de olhos ao relatório (disponível aqui). E o que encontrei?

1. Que o grosso da análise incide sobre indivíduos na faixa etária entre os 35 e 44 anos — isto é, nascidos entre 1961 e 1970 (dados de 2005). Por outras palavras, pessoas que não beneficiaram da Lei de Bases do Sistema Educativo de 1986 e que fixou a escolaridade obrigatória em 9 anos. Repita-se: os indivíduos abrangidos pela análise do indicador de persistência de salários [wage persistence] (o estudo não mede a mobilidade tal como ela é habitualmente entendida, mas refere-se quase sempre ao indicador relativo aos salários) estudaram numa escola muito diferente da que temos hoje, e que é fruto do enquadramento legal de 1986. Qualquer extrapolação desses dados para a escola do último quarto de século (e os seus efeitos sobre a mobilidade) não vale grande coisa.

2. Curiosamente, na frase do relatório citada pela notícia do i — “Em países com desigualdades grandes no contexto socioeconómico dos estudantes, incluindo México, Portugal, Luxemburgo, Espanha e Turquia, até uma influência relativamente moderada desse contexto nos resultados dos alunos conduz a uma persistência educacional maior entre gerações” —, o grupo etário relativo a Portugal diverge dos outros países: enquanto em todos o estudo recorre ao grupo 35-44, em Portugal é usado, por razões não explicadas, o grupo 25-34. Em bom rigor, Portugal não devia estar presente nesta comparação concreta, pelos motivos que os investigadores apresentaram para fazer incidir a toda a análise no grupo 35-44: “A coorte mais jovem (25-34 anos) é excluída por causa das potenciais dificuldades associadas com a mensuração de salários/rendimentos permanentes nestas idades, (…) bem como com a dificuldade em assegurar que os estes indivíduos atingiram o nível de educação que desejam.” (p. 13).

3. O que este estudo mostra é, claramente, a importância das desigualdades educativas herdadas do passado, o mesmo passado que ajuda a explicar as desigualdades salariais e de rendimentos. No Público da passada sexta-feira, Carlos Farinha Rodrigues afirmava que “é indiscutível que o principal factor explicativo da desigualdade em Portugal é a educação, o que significa que no médio e longo prazo a resolução das desigualdades tem de passar por uma alteração do nosso sistema educativo”. E essa alteração do sistema educativo está há já algum tempo em marcha.

4. Grande importância foi dada ao facto de o relatório apresentar a hipótese de que uma legislação laboral protectora do emprego reduziria a mobilidade medida pelo indicador da variação salarial, identificando Portugal como o país onde essa rigidez, segundo o índice da OCDE, é mais elevada (ver figura 18, página 67). Depois da reforma do Código do Trabalho realizada na legislatura passada, é improvável que Portugal apresente hoje os mesmos valores que o estudo teve por base, mas isso não vem ao caso.

O que vem ao caso é que este dado, que tanta atenção recebeu por parte dos nossos comentadores, tem a consistência da esferovite. Não só o efeito desta variável é quase irrelevante, como o relatório avisa expressamente que este resultado faz parte de um subconjunto de cálculos “que devem ser vistos com grande cautela, dadas as limitações empíricas associadas com as valores estimados. Em particular, uma correlação significante” entre os efeitos das políticas e o efeito do contexto familiar “não deve ser interpretada de uma forma causal. Para mais, não podemos excluir que o impacto da uma medida particular pode captar o impacto de outra, correlacionada mais omissa” (p.27), ao mesmo tempo que admite que a explicação para esta associação não é “óbvia” (p.32).

É na verdade estranho que o nível de legislação protectora de emprego tivesse grande impacto na mobilidade: é que uma coisa que os nossos comentadores não dizem é que os grandes ícones do liberalismo económico, o EUA e o Reino Unido — onde a legislação de protecção de emprego é quase inexistente —, estão no grupo dos países com mais baixa mobilidade. Inversamente, países onde o Estado social é mais generoso e redistributivo e as desigualdades de partida mais baixas, como os países nórdicos, apresentam níveis de mobilidade mais alta.

Resumindo: o relatório da OCDE conforta uma série de políticas sociais e educativas de esquerda, quando concretizadas ao longo de tempo suficiente (o que é particularmente relevante quando se trata de corrigir défices passados, como é caso de Portugal). Naturalmente, os nossos comentadores e a nossa imprensa ignoraram tudo isto.

4 comentários :

anti koba disse...

OS NOSSOS JORNALISTAS BURROS COMO SÃO NA SUA MAIORIA NÃO PERDEM TEMPO COM ESSES ESTUDOS QUE OS ACHAM COMPLICADOS E DIFICEIS DE TRADUZIR PARA CIDADÃO COMUM.DEDICAM-SE SIM
Á CANALHISSE,Á MENTIRA,Á BUFARIA E ATÉ Á ESPIONAGEM, SERVIÇO MAIS BUÇAL E QUE LHES DÁ FRUTOS IMEDIATOS, EM DINHEIRO E EMPREGO.

Anónimo disse...

Absolutamente imperdível este texto. Demostra a vacuidade cerebral que grassa na imprensa lusa. E, claro, a má-fé, desonestidade intelectual de uma série de comentadores.

Anónimo disse...

A gente lê os jornais para se desinformar ....

Anónimo disse...

Jornalista: Ignorante com carteira profissional para opinar sobre tudo, e mais um par de botas!

Que me perdoem os verdadeiros jornalistas em extinção.