- ‘Os cuidados de saúde não são um serviço como os outros, em que se escolhe quando se adquirem e pelo preço que se pode. A obsessão neoliberal pelo mercado leva os seus apóstolos a tentar transformar em mercadoria tudo o que mexe, incluindo os mais básicos serviços públicos de natureza social, tradicionalmente fora do mercado, como a saúde. Mas, de facto, se queremos ter um País socialmente decente, nem tudo pode ser sujeito ao império do mercado.
Recentemente entre nós o think tank político do PSD, Mais Sociedade, e alguns dirigentes máximos do mesmo partido vieram reiterar a aplicação ao SNS dos dogmas mais característicos da teologia neoliberal, a saber, o princípio do utente-pagador e o princípio da liberdade de opção entre o SNS e o setor privado na prestação de cuidados de saúde. Associado a estes há um terceiro dogma, aliás corolário daqueles, o de que em princípio o Estado não deve ter a seu cargo a prestação de serviços suscetíveis de serem prestados por empresas privadas, mesmo que se trate de serviços que devam ser assegurados a toda a gente, devendo quando muito financiar ou subsidiar a sua aquisição no setor privado por quem não possa pagá-los pessoalmente. Mas nenhuma desses dogmas procede no setor da saúde.
Quanto ao pagamento ou copagamento dos cuidados de saúde por quem tem rendimentos suficientes para o fazer no momento em que são necessários, nada pode justificar tal princípio. Os cuidados de saúde não são um serviço como os outros, em que se escolhe quando se adquirem e pelo preço que se pode, antes visam repor a saúde perdida quando isso ocorre, quase sempre independentemente da vontade e da ação de cada um.
Em qualquer sistema de saúde minimamente humanista toda a gente, mesmo quem tem elevados rendimentos, deve estar protegido contra as despesas em cuidados de saúde. Em princípio, ninguém adoece por opção, pelo que não é justo ter de suportar os custos dos cuidados de saúde no momento em que se necessita deles. Por isso, a necessária e justa diferenciação no financiamento da saúde em função dos rendimentos deve ser feita a montante, no momento em que cada um, independentemente de estar ou poder vir a estar doente, é chamado a contribuir para o fundo coletivo que deve custear o sistema de saúde, por qualquer das vias legalmente escolhidas (impostos, contribuição especial ou seguro de saúde obrigatório).
(…) É evidente que há custos de estrutura do SNS que existem independentemente da utilização deste, pelo que o reembolso de encargos de saúde privados acresceria em grande parte aos encargos permanentes do SNS. O resultado seria um aumento considerável dos gastos públicos com a saúde. Mesmo que o SNS fosse "emagrecendo" à medida que aumentasse a opção pelo setor privado, a verdade é que a poupança de custos naquele manteria sempre uma décalage em relação à subida dos reembolsos dos cuidados de saúde privados. Aliás, logo à partida o Estado teria de suportar o reembolso das despesas no setor privado dos que já hoje a ele recorrem pelos mais variados motivos e não recebem nenhum reembolso.
A consequência da liberdade de opção seria um crescente subfinanciamento do SNS, para compensar os gastos crescentes com os cuidados de saúde privados. Gerar-se-ia um círculo vicioso, em que a degradação da qualidade do setor público alimentaria ela mesma a fuga para o setor privado. Como a compensação pública nunca poderia cobrir 100% dos custos dos cuidados privados (incluindo os devidos lucros), haveria sempre uma parte da população inibida de recorrer ao setor privado por falta de meios para pagar a diferença. Nessa altura ter-se-ia realizado o sonho neoliberal, ou seja, um Estado reduzido ao papel de financiador ou subvencionador de cuidados de saúde privados, com um SNS residual e de "serviços mínimos" para quem não pode pagar a "majoração" de preço exigida pelos cuidados de saúde privados. (…)’
Sem comentários :
Enviar um comentário