quarta-feira, fevereiro 15, 2012

"A fronteira entre a civilização do trabalho e a lei da selva"



António Monteiro Fernandes (professor no ISCTE e especialista em Direito do Trabalho), Ainda o "bei" de Tunis:
    '1. Temos agora, em Portugal, o governo mais robusto e politicamente sólido desde a instauração do regime democrático. Assenta numa maioria absoluta ideologicamente homogénea. Vê-se na insólita situação de ser coagido, por imposição externa, a cumprir o seu próprio programa político e a concretizar a sua agenda ideológica. O principal partido de oposição está manietado pelo compromisso, assumido em estado de necessidade, que consagrou aquela imposição. Finalmente, tem perante si um povo longamente preparado para a mansa aceitação do "inevitável", para o acabrunhado conformismo e para o regresso à mediocridade. Um tão completo conjunto de condições favoráveis, nenhum outro governo o teve até hoje.

    2. Essa posição do governo não resulta enfraquecida pela evolução negativa da economia e do emprego. Pelo contrário: ela assenta essencialmente na desgraça e no agoiro, que é mesmo necessário alimentar. Estão "proibidas" as boas notícias, que poderiam gerar expectativas de travagem ou recuo na execução do programa. O ideal seria que cada português olhasse com remorso para cada electrodoméstico, cada peça de roupa, cada metro quadro de habitação, que adquiriu nos loucos anos em que, segundo prósperos cronistas, "viveu acima das suas possibilidades". E, por outro lado, fazer circular com intensidade a ideia de que a baixa produtividade é devida à falta de esforço e ao excesso de tempo livre dos trabalhadores. Manter a pressão comunicacional neste sentido é condição de êxito da operação em curso.

    3. Desenhada a traço grosso nos documentos fundamentais que são o memorando da "troika" e o Programa do Governo, ela desenvolve-se em dois planos sobrepostos.

    Num plano superior e mais visível, está a política de "cortes" no chamado "sector público". Toda a gente "percebe" facilmente que os défices das contas do Estado têm que ser reduzidos ou eliminados e que isso implica, entre outras coisas, reduções de despesa. As violências que assim se legitimam – reduções de salários já congelados há anos, reduções de pensões de aposentação e reforma, "corte" total ou parcial dos chamados "subsídios" de férias e de Natal – são, certamente, discutíveis na sua licitude, mas sabe-se para que servem.

    Num outro plano, desenvolvem-se as medidas de "austeridade laboral", umas definidas no memorando da "troika", outras concebidas pelo governo – todas no mesmo sentido: fazer as pessoas trabalhar mais tempo por menos dinheiro, com menos segurança e maior sujeição à vontade de quem as emprega. Elas não são compreensíveis no quadro de uma resposta eficaz à crise económica e financeira. São tributárias da ideia (reconhecidamente errada) de que o crescimento da economia se fará em Portugal pelo lado do trabalho barato e dócil. As indústrias que sobreviveram e que prosperam em Portugal mostram como é. Mas quem promove essas medidas actua em nome de uma fé inabalável que produz a cegueira e a surdez. São os sacerdotes da economia mística. E o seu credo impõe-lhes a convicção de que as concepções e as regras condicionantes do livre uso do factor trabalho, construídas em Portugal ao longo das três últimas décadas, têm que ser metodicamente desmanteladas – e quanto mais cedo melhor.

    4. Por outras palavras: a chamada "austeridade laboral" não é explicável pelas necessidades do combate à crise e do relançamento económico.

    Ela tem, decerto, um lado pragmático: a "troika" (em nome do mesmo credo) simpatiza com actos de maceração, de flagelação do povo assalariado, toma-os como sinais de bom comportamento dos governos – e é preciso agradar à "troika". Por outras palavras: é preciso mostrar aos credores que somos capazes de fazer sofrer para lhes ganhar os favores.

    De resto, mesmo sem "troika", e a título "preventivo", o mesmo se passa na Espanha (com 50 reformas laborais em trinta anos), na Itália e na Grécia, sempre com resultados económicos nulos e consequências sociais nefastas. Os direitos laborais são um pouco como o "bei" de Tunis de que falava Eça de Queiroz: quando não se sabe o que fazer, dá-se-lhes uma coça.

    5. Mas não é tudo. A pretexto da crise – uma magnífica "janela de oportunidade" --, o que está em marcha é mais complexo e articulado, uma verdadeira "reforma estrutural": um processo de retorno ao "statu quo" dos anos sessenta do século passado. As matérias sobre que têm incidido as medidas em causa são disso sintomas: tempos de trabalho, tempos de descanso, retribuições, despedimentos, contratação colectiva – os temas-chave em torno dos quais, em cada momento histórico, avança ou recua a fronteira entre a civilização do trabalho e a lei da selva.'

2 comentários :

Eduardo disse...

Este senhor não percebe nada. Perguntem ao Mário Crespo, que ele é que é especialista em assuntos laborais.

Anónimo disse...

Num pais onde o empresário médio não paga a segurança social dos seus trabalhadores, foge ao pagamento do IVA e ao fisco, têm a formação e a educação de uma besta ( isto é, não as têm) e possui o tão malfadado caracter mesquinho do espertinho, que se espera que as alterações ás leis laborais tragam?
É isso mesmo meus caros : desemprego e mais precaridade, mais atitudes descricionárias e situações de autentica escravatura dos assalariados.
Depois não digam que não foram avisados.
Ou este governo é posto a andar ou em menos de um ano estaremos ao nivel dos direitos sociais na china : zero!