- ‘É na pedrada na rua que se vê a raiva? Não, não é. Não olhem para a raiva de baixo, olham para a raiva de cima. É que não são só os de baixo que percebem que estão a ficar encostados a um canto, são também os de cima. Os de cima já perceberam que os melhores tempos já estão no passado, que o Governo já está mais estragado e hesitante do que o que eles desejavam, que já não está intacto e forte, mas que uma mistura de Relvas, mais o défice incontrolado, mais, espantem-se, a proximidade de eleições, está a dar second thoughts àqueles que queriam apenas como "bons alunos" e executores. O magma da "política", que os de cima tanto desprezam, começa a vir à superfície e será o "ruído" que não desejam. Ou, como diz o FMI de forma certeira, há "fadiga do ajustamento". E os de cima pensam que ainda está muita coisa para fazer, para agora já lhes começarem a dizer que se chegou ao limite. Começam a ter a sensação de que foi uma oportunidade única, ainda é uma oportunidade única, mas que está a acabar, começa a faltar o espaço. O canto começa a ficar apertado. Daí a raiva crescente.
É quando Pedro Ferraz da Costa diz, com aquele ar perpetuamente zangado e enjoado com o mundo, que é preciso acabar com 100.000 ou 200.000 empregos na função pública, sem problema nenhum, porque o Estado vai continuar a funcionar na mesma. É que não é análise, é desejo. É quando se defende um mundo que funcione para as "empresas" - uma abstracção funcional porque o que eles querem dizer é outra coisa - sem ter que emperrar porque há leis, direito e direitos, instituições e eleições, interesses outros que não os das classes "certas". Quando esse discurso, bruto e sem ambiguidades, veio ao de cima com a decisão do Tribunal Constitucional, percebemos bem a raiva.
No meio disto tudo, Passos Coelho fornece outro produto, mais à sua dimensão de executante, mas que também transporta alguma desta raiva. É quando Passos Coelho diz que "não estamos a exigir de mais", como se fosse pouco o que se está a "exigir" e ainda não levaram em cima com a dose toda. É quando avança com mais uma comparação moral que mostra o imaginário onde estamos metidos; não podemos correr o risco de nos cruzar com os nossos credores "nos bons restaurantes e boas lojas". É mesmo isso que os portugueses andaram a fazer nos últimos anos, a comprar malas Vuitton e sapatos Jimmy Choo!
Passos dizia que as pessoas "simples" percebiam isto, porque de facto para ele as coisas são assim simples. Então como é que nos devemos "cruzar com os nossos credores"? De alpergatas, vestidos de chita, trabalhando dez horas por um salário de miséria? É que não é preciso andar muito tempo para trás para ter sido assim. Ainda há quem se lembre. Deve ser por isso que é preciso "ajustar".
O papel destas ideias, elas sim "simples" no sentido bíblico, é que são aquilo que está metido dentro da cabeça do discurso do poder actual, mais por parte dos executantes do que dos mandantes. O teatro do poder actual é composto por poucas personagens a preto e branco: os credores, os devedores, os empreendedores, os "não competitivos", os que "vivem acima das suas posses" e os "ajustados", os "alavancados" e os "desalavancados", os "piegas" preguiçosos e os bons alunos que fazem o "trabalho de casa" e não querem ter direitos, os "pacientes" e as "baratas tontas". Não é um mundo muito complicado, é até assustadoramente simples, mas assusta saber que é este teatro de sombras que move o discurso do primeiro-ministro. Nele não há pessoas e quando as há estão do lado do mal, são "ruído", são não-económicas na sua essência.
Para alguns, falar dos de cima e dos de baixo, é marxismo. Coitados, sabem bem pouco o que é o marxismo, para sequer perceberem que Marx escreveu toda a sua obra para explicar que não era "científico" falar assim dos conflitos sociais. Não, não é marxismo, nem pcpismo, nem bloquismo, é apenas repetir a mais velha percepção de que os conflitos sociais de sempre se fazem entre quem ganha e quem perde, quem é mandado e quem manda, entre quem tem e quem não tem. Vem em Aristóteles e vem em Aristófanes, a sério e a gozar.’
3 comentários :
Em primeiro lugar, sejam benvindos que muita falta fizeram.
Em segundo lugar, fantástico texto do Pacheco Pereira. Por muito que possa ter algo escondido, agendas e coisas do género, é exemplar na demonstração de que estas políticas servem basicamente a muito poucos em desfavor de muitos, imensos.
Uma boa base para aqueles que foram divididos para melhor (outro) reinar percebam que só unidos os cidadãos vencerão.
Fiz dezenas de visitas diárias, que nunca lamentei e sempre aproveitei, "reencaminhado" para outros blogs bem interessantes. Foi um óptimo serviço prestado pelo CC.
Saúdo agora o regresso, que espero duradouro e frutuoso como sempre.
O artigo do Pacheco Pereira sugere-me comentar dois aspectos da "raiva" a que se refere, um dos "de cima", outro dos "de baixo".
Os primeiros, estão bem retratados nas declarações dos presidentes do BPI e do BCP, dois verdadeiros "democratas" para com os seus umbigos, que ao apresentarem os péssimos resultados dos seus bancos, aproveitaram para desviar as atenções e virar a sua raiva contra o Tribunal Constitucional, sugerindo mesmo a revisão da Constituição. É desejo já ouvido várias vezes, de outros sectores, e parece mesmo movimento bem coordenado..
Será que têm medo que o governo lhes retire o equivalente um subsídio dos seus parcos rendimentos, e enfurecem-se contra o "ricalhaço" funcionário público com 1.000 euros mensais, cujo milionário salário deve justificar o corte dos dois subsídios?!
Mas estes senhores não têm coragem de se insrgir, por exemplo, contra o TC alemão, que tem competência para intervir a propósito de tudo e de nada o que se refere às intervenções da Alemanha na resolução dos problemas da zona Euro.
Quanto à raiva dos "de baixo", pode ser que ela comece verdadeiramente a sentir-se, quando os funcionários públicos virem reposta a situação vigente no tempo do fascismo, e agora defendida pelo governo, segundo as noticias de hoje - mais segurança no emprego e melhor sistema de saúde exigem salários mais baixos (e já agora também extinção da ADSE)!
Um retrocesso de mais de 50 anos que deverá desencadear uma verdadeira raiva de toda a função pública!
É espantosa a raiva dos de cima para com um povo inteiro. Como se nunca tivessem aceite que não são especiais, que não mereceram o direito a ser preveligiados só porque nasceram com uma conta bancária bem forrada e um paizinho com uma fabriqueta onde explorava dezenas de trabalhadores.
É gente com esta mentalidade que deixamos inundar o sistema politico, gente verdadeiramente convencida que pertencem a uma casta diferente, melhor, mais merecedora.
Mas o merecimento ganha-se, não se herda nem se obtem por decreto.
É incrivel como aqueles que votaram nestes desgraçados não perceberam o que queriam quem os apoiava por trás. Bastava ter estado atento, meus amigos. Soares dos Santos, Belmiros, banca, seguros, empresários e gestores de empresas que não sabem conviver com a concorrencia...estavam á espera de que?!Que anjinhos meu deus, que anjinhos...
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