sexta-feira, abril 18, 2014

Os cortes temporários nos salários e pensões duraram três anos
e os definitivos só vão durar dois anos?


• Pedro Sousa Carvalho, Sem gordura, sal e açúcar é intragável:
    «Maria Luís Albuquerque e Pedro Passos Coelho apresentaram esta semana as medidas com que o Governo pretende reduzir o défice no próximo ano de 4% para 2,5%. Uma receita de austeridade que visa cortar na gordura do Estado, que põe os portugueses a consumir menos sal e açúcar e que deixa os funcionários públicos e pensionistas a cozinhar em lume brando até ao final do mês, altura em que serão anunciados os cortes definitivos nos salários e pensões. E, para acompanhar, uma dose q.b. de contradições.

    Primeira contradição. Em Abril de 2011, a poucos meses de ser eleito primeiro-ministro, Passos Coelho fez a seguinte promessa: "Eu posso garantir-vos, não será necessário em Portugal cortar mais salários nem despedir gente para poder cumprir um programa de saneamento financeiro, mas temos de ser efectivos a cortar nas gorduras." Precisamente três anos depois, e muitos cortes de salários mais tarde, eis que o Governo vem apresentar um ambicioso plano para cortar naquilo que se convencionou chamar "gorduras do Estado". Do pacote de 1,4 mil milhões de euros de medidas anunciadas para 2015, a grande fatia (1,2 mil milhões de euros) tem a ver com emagrecer a máquina do Estado. A intenção é boa, mas já vem com três anos de atraso.

    Na entrevista que deu à SIC, o primeiro-ministro argumenta que de 2011 a 2013 já tinha cortado 1,6 mil milhões de euros de gorduras do Estado. Ontem, o Jornal de Negócios lembrava, e bem, que as contas de Passos Coelho estão inflacionadas pelos submarinos de Paulo Portas, ou seja, sem o efeito contabilístico do Arpão e do Tridente, o corte de gorduras fica-se pelos 754 milhões de euros. Se em três anos cortou 754 milhões, como é que num só ano irá cortar 1,2 mil milhões? Como o Governo se limitou a atirar o número para cima da mesa, sem explicar onde vai cortar, ficamos na mesma.

    Segunda contradição. Maria Luís Albuquerque diz que o Governo está a pensar criar uma taxa para penalizar o consumo de produtos nocivos à saúde, ou seja, aqueles que têm alto teor de sal ou demasiado açúcar. Só que a ministra condiciona a aplicação desta medida à necessidade de reduzir as dívidas acumuladas no sector da saúde. Mas o secretário de Estado da Saúde, Fernando Leal da Costa, disse ontem ao PÚBLICO que o objectivo da taxa é melhorar os hábitos de consumo das pessoas. Ora bem, se o Governo conseguir reduzir as dívidas na Saúde, deixará então de se preocupar com a saúde dos portugueses? É o que se chama disfarçar uma medida economicista com uma medida de saúde pública.

    Terceira contradição. O Governo anunciou também a intenção de criar uma taxa para a indústria farmacêutica. Mas pelos vistos Paulo Macedo faz depender a aplicação dessa taxa à negociação entre o Ministério da Saúde e a Apifarma para redução dos preços dos medicamentos hospitalares. O Governo quer aplicar aos laboratórios uma taxa como fez com a banca, telecomunicações e energia, ou simplesmente está a chantagear a indústria para chegar a um acordo sobre a redução das despesas com medicamentos?

    Quarta contradição. O Governo já tinha anunciado a intenção de transformar os cortes temporários nas pensões e nos salários da função pública em cortes definitivos. Ficou a promessa de Passos Coelho de desvendar até ao final deste mês o que vai acontecer ao rendimento desses dois grupos que têm sido particularmente fustigados pelos cortes. Para os pensionistas, a ideia é substituir a contribuição extraordinária de solidariedade (CES) por uma nova fórmula de cálculo das pensões que vai implicar reformas mais baixas no futuro e, supostamente, para todo o sempre. Para os trabalhadores do Estado a ideia é criar uma nova tabela remuneratória única e proceder a um corte nos suplementos para substituir os cortes temporários de 2,5% a 12% que estão actualmente em vigor. Mas eis que na entrevista que deu à SIC o primeiro-ministro veio dizer que o Governo afinal vai "ter de desonerar os salários e pensões", "possivelmente em 2016". A ver se nos entendemos. Então o Governo faz cortes temporários que duram três anos e agora promete que vai fazer cortes definitivos e permanentes que só vão durar dois anos?

    Quinta contradição. Na mesma entrevista à SIC, confrontado com a intenção já anunciada por Paulo Portas de baixar o IRS em 2015, ano de eleições, Passos Coelho vem dizer que "não há nenhuma promessa para baixar o IRS". Menos de 24 horas depois, eis que Paulo Portas aparece para dizer, citando o guião da reforma da sua autoria, que "o Governo tem consciência da necessidade de criar condições para começar a inverter a trajectória de agravamento do IRS. O início desse processo deverá ter lugar ainda nesta legislatura". É impressão minha ou o líder do CDS-PP está a dizer precisamente o contrário do primeiro-ministro? Afinal em quem é que vamos acreditar? No primeiro? Ou no seu vice?

    Depois de cozinhar todas estas contradições, sem sal, sem açúcar, e sem gorduras, chega-se à conclusão de que o discurso do Governo está a ficar meio intragável e difícil de digerir.»

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