- «Uma vez, eu estava presa em Caxias, ele em Peniche. O Domingos tinha escrito estas palavras: “Na minha frente, tenho a fotografia dela. A vida a seu lado era mais bela e mais fácil. Quero-lhe muito, muito, muito. Transmite-lhe beijos e a gratidão do meu amor profundo.” Não falava em nomes, nem meu, nem dele. Só por isto, não me deram a carta. No entanto, sabiam perfeitamente que éramos marido e mulher.»
«Eu tive a menstruação. E não tinha com que me limpar. O Tinoco dizia: “Ele está muito preocupado que lhe venha a menstruação e não tenha pensos higiénicos.” Ele — o Domingos. Os espancamentos (e tive muitos), a gente aguenta. Os pontapés, os murros, o flash nos olhos. Agora, aquelas torturas morais... a mim doeram-me muito mais. Doeu-me terem-me despido à frente daquelas pessoas. Entraram todos, dez. Tentei esconder-me atrás de uma mesa, mas a pide Madalena empurrou-me para o meio da sala. Isto depois de me espancar: ‘Fala, sua puta. Não te rias’ Chora, tens de chorar’.” Queria obrigar-me a chorar!»
- Passagens da entrevista de Anabela Mota Ribeiro a Conceição Matos e Domingos Abrantes
5 comentários :
O incompreensível é como pessoas que suportaram, elas próprias, o injusto, doloroso, inumano tratamento físico e psicológico apenas por delito de opinião, sendo portanto gente que melhor que ninguém sentiu a brutalidade do poder omnipotente da ditadura sobre o indivíduo, as mesmas pessoas tenham defendido o mesmo, e até em grau mais elevado, no consulado estalinista.
Que faz que a barbaridade humana em estado puro seja para a mesma pessoa num caso o mal e noutro o bem!
Aguentaram, dizem, porque estavam preparados. De certo, estavam preparados para serem insensíveis ao sofrimento.
Que foi feito do Tinoco e da Madalena após o 25 de Abril? Aconteceu-lhes algum mal? Quando é que chega o dia de acertarmos contas com eles?
jose neves, ganha juízo
respeita aquilo que, felizmente, nunca hás-de conhecer e dá valor à tua própria inteligência e sensibilidade, não as maltratando assim à vista de todos
Caro Do fundo disse...
Foi precisamente por dar valor à inteligência e sensibilidade que fiz a pergunta:
Porque processos mentais incompreensíveis a mesma pessoa considera o mesmo tratamento desumano nuns casos como injustiça e noutros como justiça?
Se me explicares "Do fundo" certamente obterei ganho de juízo.
Prezado jose neves,
se queres mesmo saber, a minha inteligência até aceita a tua pergunta (que se pode justificar em termos abstractos e conceptuais), mas a minha sensibilidade rejeita-a, perante o concreto pessoal.
Não me sinto capaz de julgar opções políticas e ideológicas de pessoas que sofreram destratos físicos e morais que eu, felizmente, nos meus cinquenta e quatro anos de vida, nem sequer consigo devidamente imaginar.
Posto noutros termos: que pensarias tu (e eu) de diferente, sobre tudo e mais alguma coisa, se tivéssemos passado por algo assim, ou semelhante, nas nossas vidas?
Aceita lá este meu ponto de vista (mesmo que não precises de ganhar nada com ele) e desculpa o tom mais emocional do primeiro desabafo.
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