domingo, setembro 14, 2014

Falemos, então, da dívida


• Augusto Santos Silva, Falemos, então, da dívida
    «Acompanho a sugestão da ministra das Finanças de um debate sobre a dívida pública. Assinalo e saúdo a mudança de opinião do Governo: há três meses, a propósito do manifesto subscrito por 74 personalidades, o primeiro-ministro defendeu que um tal debate enfraqueceria a posição nacional.

    Para que ele seja útil, é preciso ter em conta certos factos. O aumento anormal da dívida pública portuguesa é, em primeiro lugar, uma consequência da crise financeira internacional de 2008 e da resposta que as políticas públicas do Mundo desenvolvido lhe dirigiram, para que não provocasse uma depressão equivalente à dos anos 30. Em 2007, a nossa dívida valia 68% do PIB; em 2009 tinha passado para os 84% (uso a série Pordata). Esse aumento foi apenas ligeiramente superior ao verificado em toda a Zona Euro.

    Em segundo lugar, o aumento da dívida é consequência da crise das dívidas soberanas, em 2010, e da ausência de resposta ao nível europeu. Esta ausência deixou o campo livre a todos os ataques especulativos, com aumentos sucessivos das taxas de juro, que se tornaram incomportáveis e obrigaram aos resgates. Nos dois anos em que a conduta do BCE foi minimalista, os juros castigaram severamente os países com dívidas elevadas (gerando, aliás, um efeito de renda para países como a Alemanha, que chegaram a contrair empréstimos com juros negativos). Quando o novo governador do Banco, Mario Draghi, declarou, no verão de 2012, que recorreria a todas as armas para defender o euro, os juros caíram significativamente.

    Em terceiro lugar, o aumento da dívida é um efeito estatístico de várias reclassificações, por causa, designadamente, da integração de empresas públicas no perímetro orçamental. Não discuto a justeza dessas reclassificações, lembro apenas que a elas não equivale dívida nova.

    Mas o que até agora provocou a maior subida da dívida pública foi mesmo o programa de austeridade. Em 2010, a nossa dívida estava nos 94% do PIB. A última estimativa do Banco de Portugal coloca-a nos 134%. Isto é: aumentou quase em metade.

    Não é difícil perceber porquê. Desde logo porque continuámos a acumular défices. Sofremos várias outras reclassificações. Mas, sobretudo, por causa do efeito de bola de neve: quando a taxa implícita de juro é superior à taxa de crescimento nominal do PIB, a dívida aumenta, mesmo que o Estado não gaste, em despesa corrente, mais do que recebe.

    É praticamente impossível a Portugal cumprir a obrigação de chegar, no prazo de duas décadas, aos 60% de dívida sobre o produto estabelecidos nos tratados europeus. Os níveis de crescimento e de saldo orçamental que seriam necessários estão fora do nosso alcance - e, aliás, as maneiras de chegar a um e a outro são contraditórias entre si. O estudo apresentado ao Parlamento por Ricardo Cabral e os seus colegas, assim como os cálculos apresentados pelo Presidente na última edição dos seus "Roteiros", são eloquentes.

    Ora, qualquer debate sobre a dívida que não tenha em conta estes factos carece de sentido útil. Eles mostram três coisas simples. Que o aumento descontrolado da dívida pública não é uma singularidade nem uma "falta" nossa, que deveríamos expiar, mas o efeito (certamente agravado pela fragilidade da nossa economia) de duas crises internacionais e da tibieza da resposta europeia à segunda crise, dita das dívidas soberanas. Que o programa de austeridade excessiva e antieconómica a que fomos obrigados desde 2011 só agravou o problema. E que não é possível resolvê-lo se continuarmos a seguir a mesma receita para os anos vindouros.

    Talvez se compreenda assim melhor a razão que assiste aos que defendem que é preciso pensar de outra maneira: não do défice e da dívida para a economia, mas sim da economia para o défice e a dívida. Se a nossa política face à dívida só servir para castigar a economia, nunca resolveremos a questão da dívida.»

6 comentários :

Rui Moreira disse...

Percebe-se no texto de Augusto Santos Silva (AS) a tentativa de desculpabilizar os governos em que foi ministro. Em relação à estratégia referida "da economia para o défice e dívida", devemos recordar que na 1ª década deste século (AS foi ministro entre 2005 e 2011 e já o tinha sido entre 200 e 2002) o crescimento da economia portuguesa foi praticamente nulo. Num próximo artigo seria útil explicar o que não funcionou nesta estratégia de crescimento durante os governos de que fez parte.

MANOJAS disse...

Não sei se Santos Silva vai responder, mas não seria mais útil que Rui Moreira rebatesse ponto por ponto as afirmações do artigo, justificando o que sentenciou sobre o texto.

Anónimo disse...

A dívida é um instrumento de dominação e jamais será paga, nem ninguém tem interesse em que a paguemos de modo que, para nós, nunca haverá políticas que nos permitam pagá-la.

Rui Moreira disse...

Santos Silva, obviamente, não tem de responder. Quem tem de ser claro nas suas propostas (e passar de ideias gerais para a explicação do "como") são os candidatos a 1º ministro (no futuro próximo). Dois comentários ao texto de Santos Silva: - "O aumento anormal da dívida pública é consequência da crise financeira internacional de 2008" - é em parte substancial verdade mas convém não esquecer que a) a nossa dívida pública já era superior a 60% (responsabilidade de governos anteriores do PS e PSD) o que denota a existência de problemas estruturais no Estado (a despesa do Estado subiu mais do que o crescimento da economia) b) José Sócrates (acredito que com intenções positivas) exagerou na "dose" de estímulos à economia o que não aconteceu com outros parceiros europeus.
- "em terceiro lugar...integração de empresas públicas no perímetro orçamental"- para além da justeza e necessidade desta medida (não consigo perceber como é que nenhum governo anterior constatou a necessidade de reestruturar estas empresas e deixou crescer exponencialmente as suas dívidas) devemos recordar o impacto na dívida dos empréstimos concedidos pela troika (resultado do memorando de acordo assinado pelo governo de que AS fez parte).

MANOJAS disse...

Pela minha parte, obrigado pelos esclarecimentos.

MANOJAS disse...

Pela minha parte, obrigado pelos esclarecimentos.