terça-feira, dezembro 30, 2014

«A situação jurídica em que permanece o cidadão José Sócrates
é verdadeiramente uma situação
processual-jurídica-penal de excepção»

• José Augusto Rocha, Quando o soberano dita a excepção:
    «Sob a invocação da geringonça mistificadora e hipócrita de que “à política o que é da política, à justiça o que é da justiça”, desencadeou-se na sociedade portuguesa uma equívoca campanha no sentido de que a justiça é uma coisa, a política outra. Vasos comunicantes, nenhuns.

    Com isso mais não se pretende acautelar o egoísmo duma tranquilidade de consciência, conseguida pela sistemática exclusão dos problemas. Com este arremedo de espírito democrático da separação de poderes, tem-se detido sem discussão instigadora um cidadão que foi primeiro-ministro de Portugal e manufacturou-se um manto de silêncio neste confronto infame e desigual de um cidadão remetido ao sequestro recuperador de uma acção da justiça instrumentalizada e braço de justiceiros. Contra este hodierno processo da banalização do mal, há que levantar a voz, em nome da genuína defesa dos direitos e liberdades do cidadão, tão massacradas neste insólito episódio persecutório e no cumprimento da advertência aristotélica do cumprimento de todos os deveres e do exercício de todos os direitos.

    Quando em 7 de julho de 2008, era eu presidente da Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, se realizou, sob seu patrocínio, a conferência “Guantanamo, nunca mais”, sobre os horrores dessa prisão, um dos então oradores, Prof. Luís Moita, introduziu a sua dissertação com este pensamento de Carl Schmitt, autor na marginalidade do pensamento nazi: o soberano dita a excepção.

    Esta citação traz à memória e à actualidade o pensamento e a teoria política deste controverso e conhecido jurista e filósofo nazi, que logo no início da sua obra Politishe Theologie exprime um condensado pensamento que marca toda a sua obra: “soberano é aquele que decide do estado de excepção.” As normas só podem ser aplicadas a situações normais; nas situações de excepção, a decisão cabe àquele que tem o poder para agir nesse momento: o soberano.

    A extrapolação actual e adequada desta prática política às peripécias e às contradições - mais do que isso - aos sobressaltos processuais-penais a que tem estado sujeito a itinerância do processo de detenção do cidadão José Sócrates, são motivo de forte inquietação da consciência jurídica de uma comunidade que se reivindica do respeito e da defesa de uma legalidade democrática do estado de direito. É precisamente a suspensão deste e das correlativas garantias dos direitos e liberdades, que urge no caso clarificar e tornar acessíveis ao comum dos cidadãos que se interrogam sobre o que se passa.

    A detenção e posterior prisão preventiva de José Sócrates só foi possível na base de uma organização judiciária que conferiu à investigação a existência de um único juiz, a quem, para vergonha nossa, e da dignidade da própria magistratura, “vox populi” cognomina de “super juiz” e “juiz de mão de ferro.”

    A situação jurídica em que permanece o cidadão José Sócrates é verdadeiramente uma situação processual-jurídica-penal de excepção, determinada por alguém que suspendeu as garantias normais de um estatuto de legalidade estrita e as substituiu por valores pessoais de flutuação livre. Outra leitura não pode ter o facto do carácter excepcional da prisão preventiva que foi decretada, o garrote ao direito inalienável de falar, o constrangimento do poder de recorrer em pleno com a recusa do conhecimento transparente da realidade investigada, tudo sob o pano de fundo de um segredo de justiça escancarado na rua e organizado no pelourinho de um justicialismo sedento da fúria açulada por um ambiente supressor de elementares direitos de personalidade, onde se prende para investigar e não se investiga para prender.

    A existência de um juiz soberano e único, capaz de suspender, de facto, as garantias, dá lugar a que a aniquilação do direito se confunda coevamente com a sua própria criação pessoal. As consequências assim desencadeadas repercutem-se como num mecanismo de rodas dentadas. A coercividade do direito deste modo assumida faz tábua rasa dos mais elementares direitos de defesa e descarrega sobre as ossadas do esqueleto do detido a infâmia do massacre.

    Um poder de decidir que faz da ordem jurídica uma decisão libertadora de todos os constrangimentos e conduz a um procedimento de quase prisão automática, acaba por tornar concreto o que em Maquiavel é quase uma figura ideal. Dogmatizando uma só verdade – a relatividade de todas as outras – este poder cria o húmus ideal para fertilizar a “vontade de domínio” de que falava Nietzsche.

    Este poder ignora de igual modo a advertência de Montesquieu segundo a qual “mesmo a virtude tem necessidade de limites”. A imperativa legalidade jurídico-política do caso nega a possibilidade da legitimação daquilo que seja baseado apenas na vontade política do soberano e no nocturno pensamento de triste memória “ex captivitate salus” (o cativeiro liberta). Com o soberano a suspender o direito e as suas garantias, percebe-se com isso que o direito possui na verdade uma fundamentação política ao invés de uma fundamentação normativa e que na situação concreta o juiz das liberdades, como em geral é costume chamar o juiz da instrução, nega a definição de que ele deve viver todas as paixões e não experimentar nenhuma.

    A adesão a uma perspectiva autoritária de pensamento jurídico pelo juiz de instrução do cidadão José Sócrates deixa de poder ser pensada como um acaso, para se transformar numa possibilidade inscrita no coração mesmo do seu pensamento. Ela pode não decorrer de uma necessidade interna da sua ideologia, mas enquanto a organização judiciária vigente lhe der os poderes de majestade soberana de instrução exclusiva, nada lhe obstaculiza o caminho da sua capacidade de provocar uma reflexão sobre a natureza das suas referências legais em colapso, ressuscitando-as num universo patológico de prosaica vontade de dominação política.

    Carl Schmitt, arguto jurista e filósofo do nazismo, analisou bem o problema da suspensão do direito em situações de anormalidade e foi o primeiro na sua teorização a chamar a atenção para o momento em que a estrutura do poder se revela: a decisão sobre a excepção que suspende o direito. Neste contexto, no qual se perderam as garantias representadas pela lei, a decisão erigida em princípio da vida política e encarnada num actor concreto, seja ele, um homem, um juiz, um partido, é a porta aberta para uma aventura à qual continuamos a estar expostos, mas que já mostrou a sua face terrível no curso do último século.

    Definitivamente, ao invés do que se apregoa, o que é da política é da justiça, o que é da justiça é da política. A lei deixa de ser vista de acordo com a definição aristotélica, como “a inteligência liberta de toda a paixão”. A pouco e pouco as normas tornam-se compromissos inócuos entre as forças em presença, as instituições, despojadas de todo o sentido original, simples arenas de luta. A paralisia do direito e a negação do dinamismo dos seus conceitos em direcção ao “infinito devir do Direito no sentido da Justiça”, que emerge na situação actual da sociedade portuguesa, é uma situação preocupante e de consequências imprevisíveis.

    Aí, a vontade política é uma “voluntas ambolatoria”, isto é, o arbítrio, segregado por um poder que no seu estado bruto, na sua origem, tem uma força informe e não é senão força. O soberano, senhor da “plenitudo potestatis” decidindo “de legisbus”, não necessita de outro título para mandar para além da sua própria autoridade. O fundamento da lei é apenas a vontade de quem a dita.

    Sólon, que se negou a permanecer em Atenas, uma vez concluída a sua obra advertiu os seus compatriotas do erro que cometeram ao não entender a natureza do poder excepcional do qual ele havia disposto: “depus as minhas armas diante do centro dos estrategas, e disse que era mais sábio do que os que não viam que Pisístrato aspirava à tirania, e era mais corajoso do que os que não ousavam se opor a ele”.»

12 comentários :

Anónimo disse...

Honra seja feita ao autor deste texto.

Toda a gente sabe que na comunidade jurídica ninguém entendeu ainda qual é o crime...nem vislumbrou os factos que o sustentam. NINGUÉM!

Todos se acobardam por trás da presunção - mera presunção - de que o juiz deve - deveria - saber o que está a fazer.

Nenhum juiz - nenhum homem - está acima de qualquer suspeita. E este juiz, bem este juiz já todos sabem - de gingeira - ao que vem.

Aí está a publicidade fácil, as capas dos pasquins. Nada mais fácil para obter a publicidade de pacotilha do que meter alguém na prisão. E quanto maior é a fama do preso, maior é a glória do carcereiro. Tristes tempos estes...

Anónimo disse...

CC: António Costa

A perspectiva correcta e lucida perante esta gigantesca ignominia. Pactuar com isto é admitir tudo o resto de inimaginavel. O egoísmo e a desculpa "tenho de ganhar eleições" não pega, nem faz sequer parte da equação. Os valores são demasiado altos para calculismos.Que o PS não se torne um partido de cobardes.

Anónimo disse...

Ao comentador das 8:53

Não é de cobardia que se trata. Como se pode ver pela sua visita a Sócrates, hoje mesmo, com o Dr. Mário Soares.

Vejam se entendem... O Dr. António Costa NÃO PODE E NÃO TEM a liberdade de expressão que vocês têm a levantar e/ou a apontar suspeitas sobre a Justiça. Não porque não sejam legítimas (eu também acho que a Justiça pode estar a ser politicamente instrumentalizada), mas porque António Costa será Primeiro-Ministro muito em breve.
Como tal, não pode contribuir para piorar a situação, já tão má que ela está, entrando numa armadilha da direita, prejudicando o PS e os portugueses ao dar uma machadada na alternativa que o país precisa.

Por isso mesmo, reitero... Confiem e ajudem António Costa na sua estratégia e na maneira como está a lidar o caso.

Acham que foi por acaso, que depois do desespero expresso por Marcelo Rebelo de Sousa, sugerindo que António Costa e o PS abandonaram Sócrates à sua sorte, António Costa e Mário Soares visitam Sócrates? Não. A estratégia é esta. Desmenti-los. Deixá-los mal vistos.

Deixem-nos provocar. Deixem-nos falar. Eles que fiquem sozinhos a falar na prisão de Sócrates. Quando a inocência de Sócrates for provada (e quando tal for, será de forma bombástica, com consequências para os verdadeiros terroristas que atormentam Portugal), tudo lhes cairá em cima. E será mesmo na altura certa.

A emoção tem o seu peso e influência. Mas é preciso controlá-la. Tudo a seu tempo. Não se entra de cabeça ou de pés. O inimigo é tonto, mas não é estúpido E TEM PODER, como muito bem vemos. Não se deve subestimá-lo.

Tenham calma. Tudo se irá resolver da melhor maneira.

APacheco disse...

Devia mos estar na rua a defender o Sócrates desta cambada de canalhas

soudocontra disse...

Com este (des)governo e PR nazi-fascistas, accionado como marionetas pelos patrões que estão atrás do "palco" - tal como, de facto, se passou com o Hitler, como diz o sábio texto do post. De facto SOMOS HOMÚNCULOS DE UM SISTEMA QUE NÓS, O POVO, NEM SEQUER CONHECEMOS EM PROFUNDIDADE! ... quantas décadas, quantos séculos, estamos a voltar atrás? Que as eleições sejam o mais breves possíveis, a bem de todos nós, povo, classes médias!
Permito-me citar do blogue "Ventos Semeados", na linha deste post do Miguel Abrantes: "Os dias vão passando e a situação de José Sócrates como preso político de uma FACÇÃO TOTALITÁRIA DO PODER JUDICIAL, permanece sem alteração, e até parece que se conjugam interesses para transformar um acontecimento tão grave numa aparente normalidade pantanosa. A aposta parece ser a da banalização da prisão preventiva do antigo primeiro-ministro do país e uma das personalidades mais admiradas por muitos milhares de portugueses. Mesmo que se reconheça o ódio profundo que lhe votam os néscios e os mentecaptos..."
MCTorres

Anónimo disse...

11:25 escuta, quando um partido fundador da democracia se demite de a defender é porque não esta cá a fazer nada. E não se trata de Sócrates, percebe isto de uma vez por todas, trata-se de ti de mim e de todo o edificio do regime democratico. Se julgas q o PS consegue inverter isto só por ganhar eleições estas longe de perceber o problema. Hoje vi o Costa a sair da prisão e só lhe faltou dizer que foi lá entregar um maço de cigarros. Falou como se não fosse o lider do maior partido da oposição e alheou-se olimpicamente dos seus deveres.
Pergunto: Se algum de vós fosse preso gostava de ter um amigo como Costa? Eu não.

A velha forma desassumida de fazer politica contando com a atracção natural do eleitorado
não pode fazer caminho neste ciclo eleitoral. É um ciclo totalmente diferente e que precisa de respostas diferentes, Seguro percebeu-o tarde de mais, Costa vai pelo mesmo caminho. Não há aqui Sidhartas, debaixo da figueira, ou tens coragem e lutas pelas pessoas ou vais de carrinho.
Costa até agora é uma grande desilusão,em varios temas não só neste, q ainda assim é o mais grave porque pôs a nu o verdadeiro golpe de estado democratico dado pela direita em conluio com as forças reaccionarias da justiça.

Anónimo disse...

Sou fui serei defensora de Sócrates mas sou também pelo nosso líder António Costa e acho que devemos estar a seu lado na dura luta que se avizinha, cada dedo que lhe apontarmos são abraços de satisfação que damos aos ppds e a outros. Portanto desejo que não seja nenhum socialista a dar ajuda aos direitolas!

António dos Santos disse...

Não falando de cabalas e teorias da conspiração o que,
se pode dizer do que tem sido a actuação da Justiça por
parte das duas magistraturas? A do M.Público na base de
indícios, constrói casos como a operação "face oculta",
com montes de escutas (que podem ser "trabalhadas") que,
chegam ao ponto de verem um atentado contra o Estado de Direito, é bom lembrar que tudo, dizem, começou por pos-
síveis delitos de natureza fiscal( até parece o sindroma
do Al Capone), pouco ou nada foi provado em tribunal e
os juízes por convicção aplicam penas mais do que pesadas!
O que pode o cidadão comum pensar sobre o funcionamento
da Justiça? Simples, estamos perante um tosco justicialismo cujos, protagonistas não se podem escudar
na sua "irresponsabilidade" !!!

Anónimo disse...

Independentemente do caso A ou B o estado de direito tem de ter garantias mesmo contra os atos dos juizes.

O Estado de direito não pode estar à mercê do arbitrio de um qualquer juiz ou grupo de juizes.

Qualquer partido do arco da democracia tem de participar na construção de um sistema que faça dos juizes verdadeiros responsáveis publicos.

Não há estado de direito sem responsabilidade e os senhores juizes não são nenhuma vaca sagrada acima de qualquer suspeita e irresponsáveis pelos seus atos.

Os juizes têm de responder pelos seus atos.

O espírito corporativo é uma perversão do estado de direito.

E o agrupamento sindical dos mesmos é uma negação do mesmo

Anónimo disse...

Há aqui comentadores que dando a impressâo que defendem Sócrates, estão-se marimbando para ele e visam apenas atacar António Costa.
Não se iludam, arrastadeiras destas conheço eu de ginjeira! atacar~^aoários que dando a impressãodeando a impressão

Anónimo disse...

Ó idiota das 5:48 conheces-me de onde?

Anónimo disse...

Obrigado Senhor Dr. José Augusto Rocha pelo maravilhoso texto com que nos brindou.
Acabo de o ler e, a poucos minutos do novo ano, retomo a esperança e fico com a certeza de que, com outras pessoas como o senhor, 2015 irá trazer-nos muitas mudanças e alegrias.
Muito obrigado, e um muito Feliz Ano Novo!