• Augusto Santos Silva, Guia para a destruição de empresas:
- «Em 2001, a RTP vivia uma enorme crise: de financiamento, eficiência, desempenho, identidade e legitimação social. Foi um dos temas principais das eleições do ano seguinte. O PSD propôs-se reformá-la, por via, designadamente, da redução do serviço generalista a um só canal. Mas, uma vez no Governo, de coligação com o CDS, moderou o impulso. Em vez disso, lançou, sob a responsabilidade do ministro Morais Sarmento, um processo de estabilização, racionalização e modernização da empresa.
Esse trabalho foi, no essencial, prosseguido nos dois governos do PS entre 2005 e 2011 (e os leitores podem ter presente, para situar o que digo, que tive a tutela da RTP quer em 2001-2002, quer de 2005 a 2009). Assim, e sob as lideranças de Almerindo Marques e de Guilherme Costa, a RTP conseguiu superar muitos dos seus crónicos problemas. As administrações completavam os mandatos, sem mudarem porque o Governo mudava, as direções de programas eram autónomas na gestão dos conteúdos, o Parlamento, a ERC, o Conselho de Opinião e os provedores fiscalizavam e supervisionavam. Os custos foram substancialmente reduzidos, o endividamento travado e o acionista cumpriu regularmente as suas obrigações. A concessão de serviço público estava contratualizada, com metas claras e quantificadas. Discutia-se intensamente se a empresa era necessária, se cumpria a sua missão, se a programação era adequada, a informação isenta e a opinião plural, e se o apoio prestado à indústria de cinema e audiovisual e à divulgação da cultura portuguesa atingia o bastante. Era um debate vivo, atravessado por inúmeros preconceitos e interesses, mas livre e saudável.
Há três anos tudo mudou. Não porque fosse ilegítimo que um novo Governo e uma nova maioria quisessem alterar as coisas; mas sim porque rapidamente se percebeu que não havia outra intenção senão destruir um trabalho que, por amarga ironia, havia sido iniciado pela anterior aliança dos mesmos partidos, PSD e CDS.
2011 e 2012 passaram-se em voltas e reviravoltas sobre o sentido da decisão política: ora a privatização de um dos canais, ora a privatização parcial da empresa, ora a concessão do serviço a privados... Entretanto, a Administração caía e voltava a instabilidade. Uma nova equipa de gestão foi nomeada, sem experiência no setor e muito ligada politicamente a parte do Governo. Cai depois o ministro, e a mesma ligação vira problema. Tutela e empresa não se entendem sobre os instrumentos mínimos de gestão, como o contrato de concessão e o respetivo quadro financeiro. O novo ministro, Poiares Maduro, força uma alteração radical da estrutura de governança, mas optando por uma solução que nem é carne nem é peixe e se sobrepõe parcialmente a órgãos e processos de regulação já existentes. A governança muda mas a Administração mantém-se, o que é o mesmo que dizer que a Administração se mantém mas fica obrigada a novas regras.
A coisa só podia dar no que deu. Uma Administração medíocre viu aqui a oportunidade para exibir um passo maior que a perna. O ministro vê o seu objetivo conseguido, com a destituição dos gestores, mas pela forma ínvia do uso instrumental do Conselho Geral. Este extravasa as suas competências, opinando, não sobre as obrigações e o seu cumprimento, mas sobre conteúdos concretos, que são responsabilidade editorial. Os diretores chamam a ERC, que só pode corroborar a razão que lhes assiste. E a empresa pena, pena, sem paz nem liderança, para regozijo dos concorrentes mas prejuízo dos cidadãos, seja enquanto destinatários, seja enquanto contribuintes.
Tudo o que pode fazer mal à RTP (e já o tinha feito, no passado) voltou: confusão nas atribuições, disputas de protagonismo, incompetência profissional e (sim, sim) envolvimento do poder político na atividade empresarial. É caso para dizer: como destruidores de empresas, poucos seriam mais eficazes.»
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