domingo, junho 14, 2015

Desvio inquisitorial

• Fernanda Palma (professora catedrática de Direito Penal), Desvio inquisitorial:
    «No essencial, o processo penal português está bem construído. A sua estrutura contempla os princípios fundamentais do Estado de direito democrático e consagra com equilíbrio as garantias da defesa. Todavia, a prática revela, com alguma frequência, um desvio inquisitorial. Tal desvio manifesta-se, sobretudo, em dois traços essenciais: práticas de pseudofundamentação e hipervalorização da atitude do arguido.

    As práticas de pseudofundamentação revelam-se na dificuldade de descrever os factos com independência do enquadramento normativo. Um facto relevante em processo penal é um feito voluntário humano, reconhecível pelas outras pessoas e identificável na linguagem comum. Assim, a lei processual destaca a necessidade de a acusação relatar os acontecimentos e descrever as circunstâncias de tempo, lugar e modo.

    Por outro lado, a hipervalorização da atitude pode conduzir a uma visão totalitária que assume a pretensão inaudita de penetrar na consciência dos arguidos e dos condenados, distinguindo-os mais pela sua posição perante a Justiça do que por aquilo que fizeram. Corre-se o risco de transformar o Direito Penal da culpa pelo facto em Direito Penal do caráter, à semelhança do que sucede no ‘Estrangeiro’ de Camus.

    Estas deficiências, se transformadas em rotinas judiciais, promovem uma transformação da estrutura acusatória do processo penal, consagrada no artigo 32º da Constituição, em estrutura inquisitorial. A fundamentação das decisões passará, então, a ser puramente formal e irrecorrível – por exemplo, dir-se-á que o arguido cometeu um crime descrevendo os seus elementos legais e não os factos que o corporizam.

    No caso Sócrates, a defesa tem sustentado, em substância, que são estes os vícios do processo. Averiguar da procedência ou improcedência da crítica, nesse processo concreto, só será possível quando a acusação for tornada pública. No presente estádio, apesar das notícias que têm vindo a público, o segredo de justiça torna qualquer opinião mais uma questão de fé do que o resultado de um convencimento racional.»

3 comentários :

Anónimo disse...

Estes juízes e procuradores do caso Sócrates deviam aprender com esta senhora professora evitando assim desprestigiar a justiça portuguesa e onerar cada vez mais o erário público. Depois deste processo macabro quanto custará as indenizações às pessoas vilipendiadas?

Anónimo disse...

"Estas deficiências, se transformadas em rotinas judiciais, promovem uma transformação da estrutura acusatória do processo penal, consagrada no artigo 32º da Constituição, em estrutura inquisitorial."

Agora só nos falta definir "rotina judicial" para dormirmos em paz com a nossa consciência.

Rosa disse...



Vou reler "O estrangeiro"...