quarta-feira, outubro 28, 2015

Pode a esquerda romper com a austeridade?


• Alexandre Abreu, Pode a esquerda romper com a austeridade?:
    «(…) Em diversos sentidos muito importantes, é possível romper de forma significativa com a austeridade mesmo dentro dos constrangimentos do euro, da dívida e das regras europeias. Os planos principais em que estes constrangimentos se fazem sentir são, por um lado, a pressão sobre o orçamento (directamente por via das regras e indirectamente por via do serviço da divida) e, por outro lado, o equilíbrio das contas externas (por causa da inexistência de autonomia cambial). E quer num plano quer no outro, é possível fazer diferente, e muito melhor, do que a direita.

    No plano orçamental, vale a pena recordar que é possível alcançar o mesmo saldo com diferentes combinações de receita e despesa – sendo também conhecido, inclusivamente por via de análises empíricas do próprio FMI, que em contextos de forte subutilização da capacidade produtiva o multiplicador da despesa é muito maior do que o multiplicador da receita. Isto significa que o mesmo resultado orçamental será menos recessivo se alcançado através de aumentos de impostos do que de cortes da despesa – e mais expansivo se obtido mediante aumentos da despesa do que de cortes de impostos.

    Sabendo-se entretanto que a carga fiscal é já extremamente elevada, sobretudo para a classe média, a forma socialmente mais justa e economicamente mais eficaz de fazê-lo será através do aumento da tributação sobre os mais ricos, não só em sede de IRS (que tributa o fluxo) como incidindo também sobre a riqueza (o stock). Para um mesmo saldo orçamental, conseguir-se-á assim não apenas mais justiça social, corrigindo a iníqua distribuição dos sacrifícios que tanto agravou a pobreza e a desigualdade nos últimos quatro anos, como um melhor desempenho macroeconómico, dado o mais elevado multiplicador orçamental da despesa e e a maior propensão para o consumo dos grupos de menor rendimento. As medidas de redistribuição não se limitam a promover a justiça social; são também expansivas do ponto de vista macroeconómico.

    Mas a esquerda pode também fazer melhor ao nível das contas externas, mesmo dentro dos constrangimentos conhecidos. Neste domínio, a estratégia da direita (a chamada desvalorização interna) consistiu em promover a desvalorização dos salários em toda a economia (tanto no sector exportador como não-exportador), de modo a alcançar ganhos de competitividade externa, a par da redução das importações por via da compressão do poder de compra. Esta estratégia revelou-se não só socialmente nefasta e injusta, prejudicando os trabalhadores, como também em larga medida contraproducente (pois acentua a recessão, na medida em que os salários são uma componente central da procura interna). Mesmo na ausência de instrumentos mais adequados (designadamente a moeda própria), a actuação da esquerda deve distinguir-se por ser muito mais direccionada para o sector exportador, através do apoio à inovação e à inserção internacional e através da redução dos custos não-laborais. Há muito que pode ser feito para promover o equilíbrio das contas externas sem por em causa os salários.

    Mas acima de tudo, a esquerda pode e deve romper com a austeridade mesmo sem por em causa os compromissos internacionais porque, em última instância, a austeridade não é uma questão meramente macroeconómica, mas uma questão de justiça e injustiça social. Mais do que um qualquer saldo orçamental, austeridade significa ataque ao estado social, redução dos apoios sociais e corte dos salários e pensões. É outro nome para o aprofundamento da desigualdade em benefício dos interesses particulares das elites. E se o euro, a dívida e as regras europeias limitam os ganhos que podem ser alcançados a esse nível, não impedem que se detenha e comece a inverter o rumo de degradação a que temos sido sujeitos.»

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