sexta-feira, outubro 20, 2006

Sugestão de leitura – “Tiro no pé ou no porta-aviões?”

Com o título em epígrafe, o artigo de José Miguel Júdice no Público de hoje merece ser lido na íntegra. Por isso o reproduzimos:

    “O Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), no exercício dos seus poderes legais e com total legitimidade política, recusou o nome que o procurador-geral da República escolhera para seu braço direito. O CSMP é constituído por 19 membros, dos quais 11 são, nos termos da lei em vigor, elementos da estrutura da Magistratura do Ministério Público. Quatro desses membros são obrigatoriamente procuradores distritais e, nessa medida, inseridos directamente na cadeia hierárquica que o indigitado – como vice-procurador-geral da República – iria ou irá dirigir.

    Estes os factos que pretendo analisar. Mas a realidade político-sociológica também é em si mesma um facto: o procurador-geral da República, na sua primeira actuação no cargo, é derrotado. E a realidade normativa também constitui em si mesma um outro facto: de acordo com a lei em vigor, o procurador-geral da República – que supostamente deve dirigir com base num principio hierárquico o Ministério Público – é obrigado a submeter a um órgão dominado pelos seus subordinados a escolha do seu mais directo colaborador, e este órgão pode recusar o nome.

    Se não vivêssemos em Portugal, isto seria chamado surrealista, absurdo ou brutalista, consoante a escola em que o amável leitor se queira inserir mesmo em Portugal é uma situação muitíssimo grave para o sistema judicial. E que não pode – como a pasta de dentes – voltar a ser metida no tubo como se nada se tivesse passado.

    Comecemos, então, pelo óbvio. Em qualquer organização pensada para funcionar, é essencial uma liderança e uma responsabilização. Minar a liderança é destruir a responsabilização. Um dos elementos essenciais de qualquer processo de acção é que o responsável cimeiro da organização deve poder escolher a sua equipa mais directa e, em especial, o seu braço direito. Recusar essa ponsabilidade é destruir a essência mesma da organização e do seu funcionamento.

    As leis são — diz-se — pensadas para potenciar soluções sensatas e não – deseja-se — para permitir acções disfuncionais. A lei que permite ao CSMP (em cuja composição o procurador-geral da República não tem nenhum papel) recusar a escolha do vice-procurador só pode ser interpretada no sentido de que os membros do órgão devem ter a sabedoria e a lucidez sistémicas para não destruírem a razão mesma da sua existência. Isto é, têm direitos, mas não devem abusar deles.

    É indubitável que a magistratura do MP andava em roda livre. No seu último discurso-público, Souto Moura até teorizou a realidade que viveu, como se fosse adequada e como se fosse o que o modelo constitucional deseja. O actual procurador-geral da República foi escolhido sem ou contra a vontade de estruturas representativas das magistraturas e manifestamente que também com o objectivo de reorganizar em obediência ao principio hierárquico esta magistratura, que sem isso – digo-o há muitos anos – não faz qualquer sentido. O MP não pode ser uma colecção heteróclita de advogados, tem de ser uma hierarquia de magistrados. Esta derrota de Pinto Monteiro é, por isso, politicamente central para a missão do actual procurador-geral da República.

    Depois da constatação do óbvio ululante (como diz o meu amigo Nuno Antas de Campos, citando Nelson Rodrigues), que fazer?

    Em minha opinião, o procurador tem três opções à sua frente, que aliás não são totalmente impossíveis de conciliar. Pode voltar a indicar o mesmo nome na reunião agendada para a próxima semana, como parece que – a acreditar nos jornais – vai fazer. Pode exigir a alteração da lei. Ou pode demitir-se, por falta de condições para o exercício do cargo. Pode fazer tudo isto, mas não pode fazer mais nada, sob pena de destruir as condições de sucesso da missão de que foi incumbido.

    Se voltar a indicar o mesmo nome e ganhar, conseguiu uma vitória politica, que deve capitalizar de seguida, sem ilusões sobre a mudança do sentido de voto de alguns dos conselheiros. Era melhor que não tivesse acontecido, mas pode sobre isso construir uma liderança.

    Se voltar a ser derrotado, não tem outra alternativa que não seja apresentar o pedido de demissão a quem o convidou. Se optasse por outro nome (e agora creio que até a “disneyana” personalidade que dá pelo nome de Pateta seria aceite), teria de reconquistar o poder à espadeirada e, com isso, provocar reacções inevitáveis. Quem começa fraco termina em grande ditador.

    Se apresentar o pedido de demissão, o poder politico não o deve aceitar, pois se o fizer ficou dado o sinal: na justiça mandam as estruturas e não mais um procurador-geral da República poderá ousar ter uma interpretação da Constituição diferente da que dominou no consulado Souto Moura. Mas não aceitando o pedido de demissão, o poder politico tem de alterar esta insensata lei que permite a este Conselho Superior (e, já agora, aos restantes) a autogestão que tão mal tem feito ao sistema judicial. Como aliás o próprio conselheiro Pinto Monteiro corajosamente explicou recentemente em entrevista ao PÚBLICO. Também por isso afirmei em tempos que era pena que no Pacto da Justiça não tivesse sido contemplada a revisão do regime dos Conselhos Superiores.

    Pode ser, assim, que esta votação – que foi seguramente pensada com um tiro no porta-aviões – acabe por ser um tiro no próprio pé. E não seria o primeiro: a quase recusa do CSM em aceitar graduar uma professora universitária e juíza do Tribunal Constitucional para aceder ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ) foi seguramente instrumental na criação pelo Pacto de Justiça de uma linha de acesso ao STJ exclusiva para juristas de mérito, com vantagem para o sistema judicial.

    Esta é, salvo melhor, a minha opinião. Como se costuma dizer nos tribunais.”

4 comentários :

Kamikaze (L.P.) disse...

Um comentário de Gomez *(a este post do Incursões):

O Bastonário José Miguel Júdice - que (segundo li algures) já tinha dito que no lugar do Conselheiro Pinto Monteiro teria pedido a demissão, face ao veto, pelo CSMP, do nome proposto para Vice-PGR - dá hoje no “Público” (link não disponível) conselhos ao PGR que só poderão conduzir a um resultado: o pedido de exoneração (a menos que o CSMP aceitasse reponderar o veto à adequação do perfil do nome proposto para Vice-PGR, cobrindo-se de um irremediável descrédito...), com a consequente abertura de uma crise de repercussões imprevisíveis.
Tal como J. M. Júdice, entendo que o MP carece hoje, patentemente, a vários níveis, de liderança e de uma efectiva afirmação da hierarquia e dos mecanismos de coordenação, nos limites da lei, em benefício da eficiência, da eficácia e até da concretização, real, dos princípios da legalidade e da igualdade dos cidadãos perante a lei.
Mas nenhuma “máquina” se afina e nenhuma hierarquia se afirma, pela via da “espadeirada” (acompanhada, ou não de discursos grandiloquentes...). Qualquer reorganização bem sucedida pressupõe uma “massa crítica” de apoio, por mínima que seja. E só se consegue removendo, com determinação inquebrantável, mas também com bom senso, as inevitáveis resistências à mudança, evitando vias que as adensem.
Na minha modestíssima opinião, se o PGR está verdadeiramente empenhado em ter sucesso na reforma e na liderança do MP, trabalhando desde já com as leis que existem (como afirmou), deverá evitar os cantos das sereias voluntariosas que o empurram para confrontos que não poderá ganhar ou que só ganhará com vitórias de Pirro (que não só não o ajudarão a atingir os seus objectivos como serão mais uma machadada no crédito das magistraturas).
O PGR tem de ser um líder, com um programa claro. Mas liderar não é, só, julgar em última instância. Pressupõe um conjunto complexo de valências (visão estratégica, táctica, capacidade de gestão, de comunicação e de mobilização, ...). Também na vertente interna, o PGR terá de ter tacto “político” e “diplomático” se quiser atingir os seus objectivos. Isto não quer dizer que admita transigir sobre o rumo traçado. Quer dizer, apenas, que uma recta nem sempre é o caminho mais curto entre dois pontos, como saberá qualquer gestor capaz.
Importa, por último, recordar o óbvio: os comentadores dos media (sem excluir, naturalmente, o obscuro signatário) têm, por vezes, agendas próprias e não se responsabilizam – nunca – pelos resultados dos seus conselhos, recomendações e informações...

* titulo deste post da minha (Kamikaze) responsabilidade

Anónimo disse...

Recorda-me fins da década de 70, em que tive funções de direcção num importante empreedimento português em Moçambique, onde quando precisava de admitir um trabalhador tinha de sujeitar a admissão ao parecer da da estrutura de trabalhadores do sector, afinal não diferimos da República de Samora Machel.
João Ferreira

Anónimo disse...

Mais uma atitude oligarquica dos magistrados capitaniados pela direcção do sindicato.Á que por rapidamente esta casa na ordem.
ribeiro

Kamikaze (L.P.) disse...

Ribeiro: nao duvido que a direcçao do sindicato gostasse de "capitanear os magistrados", mas esta longe disso ah ah ah(informe-se, por exemplo aqui)
*
Quanto ao artigo de Judice, mais um escrito alheio, lido no Sine Die

Sinceramente, espanta-me a crónica de hoje de J.M. Júdice no Público ("Tiro no pé ou no porta-aviões"). É que ela é, afinal, um desafio ao PGR para que afronte o CSMP, ou então que se demita!... Tal radicalismo pode levar água no bico. Mas o PGR certamente não se deixará embalar em cantos de sereias...
O meu espanto deriva sobretudo de ter ouvido Júdice, repetidas vezes, durante o seu mandato como bastonário, apoiar a autonomia do MP. E agora vem atacar descabeladamente o CSMP, precisamente o órgão que melhor representa a autonomia do MP, por ter exercido uma das suas competências legais: a de votar o nome proposto pelo PGR para Vice-PGR (votar sim ou não, porque se só pudesse votar sim não seria uma votação, mas antes uma aclamação).
Júdice esqueceu tudo o que dizia e sabia sobre o MP e agora olha para este como se fosse uma qualquer "organização", em que o "responsável cimeiro" deve poder escolher a sua "equipa" e o seu "braço direito".
Mas o MP não é uma organização qualquer, é uma magistratura autónoma. E o Vice-PGR não é o braço direito nem esquerdo do PGR, é o seu substituto legal na plenitude das suas funções, é o segundo dirigente do MP e por isso a sua escolha não pode ser feita exclusivamente na base da confiança pessoal do PGR, antes na conjugação de vontades entre o PGR e o CSMP, o que lhe confere uma legitimação específica, tendo em conta a composição mista do CSMP. O Vice-PGR, insisto, não é um funcionário administrativo, um conselheiro, um confidente ou um membro do gabinete do PGR, é um magistrado dirigente, o número dois da hierarquia. A confiança pessoal do PGR não é suficiente para a sua legitimação.
Tudo isto eu julgava que Júdice sabia e compreendia. Provavelmente esqueceu. Mas, em todo o caso, estranha-se tanto empenho na radicalização de posições dentro do MP.
Volto a dizer: o CSMP limitou-se a exercer as suas competências. Não houve aliás alinhamentos corporativos na deliberação, houve dispersão de votos entre as diversas componentes do órgão. Tudo decorreu conforme as regras. Para quê este alarido? Para quê este apelo às hostilidades? Para quê este incitamento a que seja apresentado o mesmo nome na próxima votação (o que contraria a lei)? Que interesse há nisso? A quem interessam as batalhas navais?

Eduardo Maia Costa