sexta-feira, outubro 06, 2006

Sugestão de leitura

José Miguel Júdice escreve sobre a justiça no Público (“Noronha do Nascimento, mesmo sem almoço”). Aqui se reproduzem duas frases:

    • «O programa eleitoral do conselheiro Noronha do Nascimento que, tem toda a razão António José Teixeira, mais parecia destinado a conquistar votos para ser eleito presidente do "Supremo Sindicato da Justiça".»
    • “(…) acho que Souto Moura foi um erro de casting (sem prejuízo das suas notabilíssimas qualidades humanas) (…)”.

1 comentário :

Anónimo disse...

Noronha do Nascimento, mesmo sem almoço
José Miguel Júdice



Anda tudo muito nervoso nas magistraturas, segundo me parece. Querem exemplos? A espantosa (ainda que irónica) declaração do procurador-geral da República sobre a contratação de centenas de assessores de imagem (como se os problemas que afligiram o seu mandato tivessem sido causados por falta deles). O editorial do boletim do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, que acusa os directores do PÚBLICO e do DN de serem penas vendidas ou, o que dá eticamente no mesmo, de se vergarem a interesses ocultos. O programa eleitoral do conselheiro Noronha do Nascimento que, tem toda a razão António José Teixeira, mais parecia destinado a conquistar votos para ser eleito presidente do "Supremo Sindicato da Justiça".
Quero fazer aqui, antes de comentar, alguns registos de interesses: acho que Souto Moura foi um erro de casting (sem prejuízo das suas notabilíssimas qualidades humanas); considero António Cluny um dos mais brilhantes ideólogos da justiça e um defensor claro de um movimento de reformas na justiça, em que as profissões se empenhem; tive profundas divergências públicas com o actual presidente do Supremo Tribunal de Justiça pela forma como tentou boicotar o Congresso da Justiça e impedir a existência de um anteprojecto do pacto para a justiça e para a cidadania, mas reconheço-lhe grandes qualidades intelectuais.
Defendi desde sempre que as reformas judiciais inevitáveis e indispensáveis devem ser feitas com a colaboração das profissões, por razões de tal modo óbvias que me dispenso de as referir. Mas também escrevi que, se necessário, devem ser feitas sem as profissões e, se inevitável, até mesmo contra elas.
A reforma da justiça é a alavanca essencial em que sustentar o processo de modernização do Estado e da sociedade. Não pode, por isso, ficar sujeita a interesses corporativos e a receios de reacções sindicais. E a reforma vai mesmo começar, como o demonstra o consenso a que chegaram os dois principais partidos e o papel inequívoco que nele tiveram os respectivos líderes e o Presidente da República.
Por isso as profissões judiciárias estão numa encruzilhada. Podem optar por se refugiar numa visão conservadora e meramente reactiva e, desse modo, complicarem a concretização das reformas e, sobretudo, a respectiva execução. Receberão a natural gratificação dos sectores mais retrógrados das respectivas corporações e aplausos diversos dos que preferem que o sistema judicial esteja paralisado.
Podem, no entanto, as profissões optar por uma solução distinta e até oposta: confrontados com o conteúdo consensualizado no pacto da justiça, podem lutar para que se realizem outras reformas para além dessas (como, por exemplo, a do Código do Processo Civil e a da reorganização da investigação criminal forçando a articulação entre a Polícia Judiciária e a Procuradoria-Geral da República). E, sobretudo, podem ajudar no concreto (e com a enorme experiência que têm do funcionamento do sistema judicial) a que se não cometam erros evitáveis na legislação e na implementação das reformas.
Aparentemente tudo indica que as profissões vão optar pela primeira alternativa. Noronha do Nascimento é o expoente do sector mais conservador da magistratura judicial (apesar de ser ideologicamente um cidadão muito à esquerda). O Sindicato dos Magistrados do MP apelida de "cães de guarda" (que têm donos "que ladram pela boca" deles) directores prestigiados de órgãos de comunicação respeitáveis. A Ordem dos Advogados reúne uma assembleia geral extraordinária para aprovar um seguro de acidentes de viagem, a defesa das pequenas delegações e um grupo de trabalho, decisões estimáveis, mas talvez não tão prioritárias quanto as questões da reforma da justiça. O único aparente sinal positivo parece ser a figura do novo procurador-geral da República, mas ele por si só pouco pode fazer, pelo menos enquanto não reestruturar a hierarquia dessa magistratura.
A História revela, no entanto, e por vezes, que políticos oriundos de sectores muito conservadores são os que conseguem encetar processos corajosos de reformas. Isso sucede quando se convencem de que a continuação de uma opção de resistência à mudança não conduz a lado nenhum, antes levando a que mais tarde as opções se tornem mais dramáticas e ainda mais gravosas. E também, por vezes, certas reformas só se conseguem fazer se forem pilotadas por dirigentes que - tendo a confiança pessoal dos sectores mais anti-reformistas - desfazem resistências e bloqueios.
Foi Nixon quem viajou até à China, foi Mandela quem assegurou uma transição democrática na África do Sul, foi Rabin quem apertou a mão a Arafat, foi até Sharon quem entregou Gaza. Mas também foi Marcello Caetano quem não foi capaz de encontrar um caminho reformista, o que demonstra que nem sempre se consegue quando se deseja.
Conheço bem o conselheiro Noronha do Nascimento. Conheço o que escreveu e defendeu ao longo da vida, o radicalismo das suas posições, a alma de sindicalista que o habita e lhe dá alento e fôlego juvenis. Mas também sei da sua inteligência, da sua vaidade e da sua ambição, características que podem ser positivas, se usadas em doses adequadas. Tem pela frente o maior desafio da sua brilhante carreira profissional e que pode marcar de forma inequívoca a imagem que deixe aos vindouros.
O presidente do STJ é a quarta figura do Estado português e o líder natural da magistratura judicial. Foi eleito com um programa claro e sem ambivalências, típico de um dirigente sindical. Tem legitimidade democrática e autoridade política. Ninguém como ele pode criar as condições para a aceitação pela magistratura judicial das reformas necessárias e inevitáveis.
Por isso digo que em Noronha do Nascimento repousa parte importante das condições de sucesso das reformas que vão ser implementadas. Já pensava isso quando - há quase cinco anos, recém-eleito bastonário da Ordem dos Advogados e em minha casa - lhe pedi que liderasse o movimento reformista da justiça em Portugal. Ficámos de falar disso, quando da retribuição desse almoço - o que, infelizmente, nunca aconteceu. Advogado



http://jornal.publico.clix.pt/noticias.asp?a=2006&m=10&d=06&uid={E3ED3996-3893-48CF-8886-F9385A317DF1}&id=100972&sid=11145