A Mafalda estendeu a conversa que vínhamos mantendo ao Vasco M. Barreto, a propósito do que ele escreveu neste post. A “nossa” adepta do “Não” veio utilizar um argumento de peso para provar que a não punição da pílula do dia seguinte não constitui argumento que prove a incoerência daqueles que, como a própria Mafalda, se opõem à despenalização da interrupção voluntária da gravidez. Vou responder apenas a esse argumento parcialmente novo e, a partir de agora, tentarei não me repetir.
O que diz a Mafalda? Diz que o direito penal é fragmentário e que, por isso, não há nada de anómalo em a pílula do dia seguinte não ser punida, mas já ser punida qualquer manobra abortiva posterior à nidação.
Ora vejamos: o carácter fragmentário do direito penal significa só que apenas podem ser punidas as condutas concretamente previstas na lei penal. Sabe qual é a outra forma de falar nisso, Mafalda? É dizer que não há lacunas em direito penal, quando estão em causa normas incriminadoras. E isso implica que não possa haver aplicação analógica dessas normas incriminadoras para punir outras condutas.
Lembra-se dessa nossa conversa, Mafalda? Às vezes, suspeito que tem umas “inspirações” que não lhe permitem compreender globalmente os problemas jurídicos.
Façamos um ponto de situação. O legislador só pode criar crimes para defender bens jurídicos dignos e carentes de tutela. Em regra, não é obrigado a criar crimes. Tal como lhe disse, citando o Prof. Figueiredo Dias, só é obrigatório criar crimes quando a Constituição obrigatoriamente o prevê.
Nos outros casos, tudo depende da possibilidade de proteger os seus bens jurídicos de outra maneira (por exemplo, através de politicas sociais). É assim que se fala do princípio da intervenção mínima do direito penal. Fragmentariedade, proibição de analogia e subsidiariedade conjugam-se com harmonia para quem saiba direito penal. Verdade, Mafalda?
Mas o problema de Mafalda é outro. A Mafalda não está deste lado, que é o lado do Iluminismo e da modernidade — está do lado do “Antigo Testamento”, apesar de eu ter a certeza de que é uma excelente pessoa. A Mafalda pensa que, por a vida ser um bem jurídico e por a Constituição dizer que ela é inviolável no artigo 24.º, é inconstitucional despenalizar qualquer atentado contra a vida antes e depois do nascimento.
Por isso, Mafalda, a sua única posição coerente, repito, é lutar pela criminalização da pílula do dia seguinte. Eu até lhe dou uma ajuda técnica se o quiser fazer:
Em primeiro lugar, proponha que a tentativa passe a ser punida sempre. Para isso basta que se acrescente um novo número ao artigo 140.º, um n.º 4, que estabeleça que a tentativa é punível. Assim, apesar de a pena para o crime consumado não exceder três anos, a tentativa passará a ser punida, como acontece, por exemplo, no furto, na burla ou no dano. Na perspectiva da Mafalda, esta é a solução que se impõe, até em nome do argumento simplista de que a propriedade não merece mais protecção do que a vida.
Em segundo lugar, modifique a epígrafe que fala em crimes contra a vida intra-uterina por uma epígrafe que fale em crimes contra a vida concebida. No próprio articulado, para evitar enganos, diga que é punido “quem por qualquer meio (…) fizer abortar a mulher após a concepção (…)”.
Com estas duas propostas, a Mafalda fará um brilharete no seu movimento. Poderá até competir com o pároco de Castelo de Vide pelo título de campeã “pro-lifer”.
Já percebi, porém, que a Mafalda não quer ir por esse caminho. Uma réstia de bom senso previne-a de que é má ideia. Essa réstia, assuma-a com coragem, deveria permitir-lhe compreender que a vida intra-uterina não é tão valiosa como a vida de um ser nascido e que a vida intra-uterina tem de ser ponderada no caso de conflito com outros bens jurídicos: a vida, a integridade física, a liberdade e a dignidade da mulher grávida.
É este passo que a Mafalda não consegue dar e lhe provoca vertigens. Compreendo e respeito o seu receio. Mas não venha com a conversa de que a punição da tentativa impossível de aborto não é punível porque a tentativa não é punível, com a conversa de que a pílula do dia seguinte não é crime porque pode ser comprada em qualquer farmácia, etc., etc..
Faço-lhe a justiça, Mafalda, de acreditar que compreende que todos esses argumentos encerram uma petição de princípio. O problema a que não consegue responder é este. Na sua perspectiva, a vida é inviolável desde a concepção e é obrigatório constitucionalmente punir os atentados contra ela. Se é assim, força! Faça campanha contra a pílula do dia seguinte!
segunda-feira, janeiro 22, 2007
Mafaldinha, a fragmentária
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3 comentários :
Porra que és burro...
A pílula do dia seguinte nada faz ao ovo (ou à mórula), dando indicação ao útero para se libertar do endométrio e impedindo assim a nidação.
Era melhor que falasses do que sabes...
"A pílula do dia seguinte nada faz ao ovo (ou à mórula), dando indicação ao útero para se libertar do endométrio e impedindo assim a nidação."
Este argumento tem piada... O corolário é que se eu enfiar alguém numa sala hermeticamente fechada e de seguida expulsar todo o oxigénio não estou a fazer nada de mal já que durante o procedimento nada fiz ao organismo vivo dentro da sala...
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Quem fala da pilula do dia seguinte fala do dispositivo intra-uterino que irrita fisicamente as paredes do útero por forma a impedir a nidação.
O DIU liberta sais de enxofre que são espermicidas (para além ir, regularmente, tocando no endométrio e obrigando-o a sair, provocando a menstruação).
"Este argumento tem piada... O corolário é que se eu enfiar alguém numa sala hermeticamente fechada e de seguida expulsar todo o oxigénio não estou a fazer nada de mal já que durante o procedimento nada fiz ao organismo vivo dentro da sala..."
Sempre é melhor do que matar um ser humano com 10 semana, com SNC já activo (quer quer a pílula do dia seguinte quer o teu método matar pessoas), caro Miguel...
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