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sábado, março 17, 2007
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Autor: Constança Cunha e Sá
Data: Quinta-feira, 15 de Março de 2007
Pág.: 45
Temática: Espaço Público
O estilo do primeiro-ministro confirma apenas a sua falta de substância
O estilo e a substância
José Sócrates, esse estadista de última hora, foi sempre um homem do aparelho, um cacique local que cresceu nos jogos partidários e se distinguiu nos golpes de bastidores
Em Portugal, há uma suave combinação entre o poder e a arrogância que leva invariavelmente ao mito e à hagiografia. Em 1990, quando o cavaquismo decidiu vender uma imagem diferente do chefe, o Expresso deu à luz um trabalho de fundo, sob um título auspicioso: A história do menino Aníbal. Como mandam as regras da propaganda, A história do menino Aníbal oferecia-nos "o retrato de um vencedor" e o percurso de um "predestinado" que "o acaso" empurrara para a política, a bem da modernização do país e da felicidade dos portugueses. A biografia, recheada de pequenos e coloridos episódios, revelava um "novo" Cavaco Silva, surpreendentemente humano (havia dúvidas sobre a matéria!) nos seus pequenos prazeres e nas suas inocentes "tropelias". Para deleite de todos os fiéis, ficou-se a saber que, por trás do rosto esquálido e austero do primeiro-ministro, havia um "Aníbal" traquinas que gostava de pingue-pongue e de matraquilhos e que subira a pulso na vida. Ungido pelo mérito, o rapaz pobre de Boliqueime, que fazia parte dos "costeletas" (por oposição ao grupo privilegiado dos "bifes"), acabara por se transformar num mago da economia, com doutoramento a preceito e provas dadas no desprezível mundo da política. Na altura, quando o regime celebrava a existência de um "novo português" que se distinguia pela "vontade de vencer", o exemplo de Cavaco Silva, educado no esforço e na disciplina, era a confirmação de um sonho que animou esses excepcionais anos de falsa prosperidade.
Apesar da sua aridez e da limitação dos seus horizontes, a história do "menino Aníbal" tinha, apesar de tudo, um sentido que ultrapassava a mera glorificação do chefe e do seu grandioso "destino". Entre os sacrifícios da infância e o posterior brilho da academia, a biografia não deixava de encerrar o essencial do cavaquismo. Ou, dito de outra forma, o essencial de uma velha e recorrente tradição nacional que privilegia o esforço e o mérito em detrimento dos "interesses" mesquinhos dos partidos, que defende o primado da competência sobre as subtilezas da ideologia e que, em última análise, se baseia na superioridade da economia face às "intrigas" em que se entretém a política. Neste sentido, o retrato de Cavaco Silva é também o retrato de um país que procurou sempre fugir às suas responsabilidades através dos bons ofícios de um qualquer salvador que o resgatasse do seu proverbial atraso e da sua irremediável pobreza.
O que impressiona na biografia do eng. Sócrates, publicada, este fim-de-semana, pelo semanário Sol, é o imenso vazio em que se afundam as inúmeras qualidades atribuídas ao biografado. Em vinte páginas de prosa, ao longo das quais vamos assistindo ao harmonioso desenvolvimento do pequeno Zezito, não há um pormenor que o diferencie, um traço que o caracterize ou uma ideia que o distinga - e muito menos algo que o determine à nascença para o exercício do poder, como assegura o título escolhido pelo semanário para coroar esta hagiografia da mediocridade.
Na história do "menino Zezito", não há esforço, nem sacrifício. Também não há proezas académicas. Nem feitos profissionais. O bacharelato no ISEC - que tantas dúvidas tem levantado - é completado, vinte anos depois, quando já se encontrava no Governo do eng. Guterres, com uma obscura licenciatura, na Universidade independente. Pelo caminho, e dando provas da sua vocação para a política, mergulha, com o amigo Jorge Patrão, "nos meandros socialistas da região". Ou seja, envolve-se nas pequenas guerras do aparelho, onde gasta o melhor dos seus dias e inicia a sua fulgurante carreira. Em 1987, depois de se ter enfiado no sótão do eng. Guterres e numas intrigas de maior alcance, chega finalmente ao Parlamento, onde viceja discretamente durante os anos do cavaquismo. Ao contrário do que a sua "coragem" e "determinação" poderiam indiciar, José Sócrates, esse estadista de última hora, foi sempre um homem do aparelho, um cacique local que cresceu nos jogos partidários e se distinguiu nos golpes de bastidores.
Antes de assentar na política, não deixou de fazer umas breves incursões profissionais. Em 80, deu aulas de Matemática no Liceu da Rainha D. Leonor. E, um ano mais tarde, arranjou um "posto" na Câmara Municipal da Covilhã, onde se distinguiu pelo "estilo", fugindo, como diz o jornal, ao "estereótipo do senhor engenheiro" que ele, para todos os efeitos, não era. Mas usava "calças encarnadas" - o que já então revelava uma aversão às regras da burocracia que se veio a corporizar, mais tarde, na apresentação do programa Simplex.
É com este extraordinário curriculum que chega, em 95, ao Governo, pela mão do eng. Guterres, de quem foi sempre um solícito boy. Mantém-se firme, ao seu lado, até ao fim, quando o seu tutor político abandona as funções de primeiro-ministro depois de ter deixado, segundo as suas próprias palavras, o país "à beira do pântano". Uns anos mais tarde, surge a consagração mediática, com um frente-a-frente, na RTP, com Pedro Santana Lopes, uma das grandes estrelas desse restrito firmamento.
Diz este último que o conhece como ninguém. E acrescenta: "Há duas pessoas na política que perceberam o meu método e, nalguns aspectos, seguem os meus passos: o Carrilho e o Sócrates." Por uma vez, uma pessoa sente-se tentada a dar-lhe razão. O estilo do primeiro-ministro confirma apenas a sua falta de substância.
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