terça-feira, março 11, 2008

O Público segundo o criador





Vicente Jorge Silva escreve no Sol sobre a história do Público. Eis algumas passagens, podendo o artigo ser lido aqui (ou na caixa de comentários):
    “(…) não posso ficar indiferente quando uma história na qual participei é contada de forma distorcida - pelo menos aos meus olhos - e que, para conveniência dos seus actuais protagonistas, surge exposta de modo linear, pacífico, sem descontinuidades ou conflitos, quando ela é efectivamente descontínua, dramática e de rupturas (embora não assumidas) ao longo do tempo.

    Não se pode disfarçar o que é indisfarçável e pactuar com a hipocrisia ou o cinismo dos que pretendem rasurar o passado daquilo que não encaixa na sua interpretação falsamente beatífica das coisas.”

    “Fernandes faz de conta que entre o princípio e o fim provisório desta história terá havido uma linha editorial essencialmente coerente com o espírito original do jornal. Por outras palavras: simula que a memória não existe, nem sequer a dos leitores que, tendo acompanhado o Público desde os primeiros tempos, puderam constatar não apenas as suas radicais metamorfoses gráficas e estruturais como, sobretudo, o alinhamento ostensivo das posições editoriais mais influentes - as do director, obviamente - com uma cruzada ideológica de matriz neoconservadora, que levou, entre outras coisas, à legitimação das políticas da actual Administração republicana e da intervenção no Iraque.”

    “Não ponho em causa o direito que assiste a José Manuel Fernandes de escrever o que escreve e defender as causas em que acredita. Tal como não questiono o seu direito e o da administração do Público de proceder à transformação do jornal em algo essencialmente diferente daquilo que foi nas suas origens já longínquas. São as regras do jogo: quem tem dinheiro e poder é que manda (…)”.

    “Tal como não imagino que o New York Times se transforme no Wall Street Journal ou vice-versa - sendo ambos eles, diga-se, excelentes jornais, embora de orientação editorial antagónica -, não me parece normal que um jornal que foi uma coisa passe a ser outra insistindo em fingir que o não é enquanto alguns que criaram o Público se conformam temerosamente com essa aparente fatalidade.

    Aquilo que hoje afecta - por vezes muito injustamente, reconheço - a credibilidade do Público tem a ver com a falta de transparência e o carácter errático da sua linha editorial. É uma opinião, mas, como se sabe, está longe de ser apenas a minha opinião.”

1 comentário :

Miguel Abrantes disse...

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Os 18 anos do Público



Começo por confessar que hesitei muito antes de escrever este texto, ainda por cima numa semana em que a actualidade nacional (a criminalidade violenta ou o movimento dos professores) e internacional (as primárias americanas de terça-feira) ofereciam ampla matéria para comentário. Mas acabei por decidir fazê-lo por duas razões essenciais: a primeira é que se trata de um tema que tem a ver comigo e não posso ignorar; a segunda é que a minha opinião sobre os acontecimentos da semana será sempre, apenas, uma opinião entre outras opiniões.
Este é o testemunho pessoal – e, nessa medida, único – de alguém que protagonizou uma aventura que, há dezoito anos, mudou o panorama do jornalismo diário português. Mas há um motivo adicional: não posso ficar indiferente quando uma história na qual participei é contada de forma distorcida – pelo menos aos meus olhos – e que, para conveniência dos seus actuais protagonistas, surge exposta de modo linear, pacífico, sem descontinuidades ou conflitos, quando ela é efectivamente descontínua, dramática e de rupturas (embora não assumidas) ao longo do tempo. Não se pode disfarçar o que é indisfarçável e pactuar com a hipocrisia ou o cinismo dos que pretendem rasurar o passado daquilo que não encaixa na sua interpretação falsamente beatífica das coisas.

O Público decidiu celebrar a sua chegada à idade simbólica da maioridade com a publicação nostálgica de uma edição que nunca chegou às bancas, a 2 Janeiro de 1990, à qual que se seguiu um caderno especial comemorativo dos 18 anos que entretanto decorreram e das mudanças que, nesse período, abalaram o mundo. No texto de apresentação desse caderno, José Manuel Fernandes cita simpaticamente passagens do editorial que escrevi para o número 0 do Público, onde eu me interrogava com algum pessimismo sobre a euforia democrática que se seguiu à queda do muro de Berlim e lembrava ‘velhos fantasmas’ que entretanto ameaçavam regressar: ‘Um nacionalismo que evoca antigos pesadelos’ e a ‘crispação chauvinista e religiosa’. Eu temia, então, que a década da democracia – recorda ainda Fernandes – viesse a ser ‘apenas uma miragem do fim do milénio’.
Estas citações de que parte o actual director do Público são elucidativas a mais de um título: porque ele as integra numa visão pretensamente consensual das mudanças ocorridas nestes dezoito anos e porque escamoteia, num editorial comemorativo, a própria memória e os acidentes de percurso da história do jornal ou a ruptura que se foi progressivamente desenhando entre o Público dos seis primeiros anos – de que fui director – e o Público que hoje existe.

Fernandes faz de conta que entre o princípio e o fim provisório desta história terá havido uma linha editorial essencialmente coerente com o espírito original do jornal. Por outras palavras: simula que a memória não existe, nem sequer a dos leitores que, tendo acompanhado o Público desde os primeiros tempos, puderam constatar não apenas as suas radicais metamorfoses gráficas e estruturais como, sobretudo, o alinhamento ostensivo das posições editoriais mais influentes – as do director, obviamente – com uma cruzada ideológica de matriz neoconservadora, que levou, entre outras coisas, à legitimação das políticas da actual Administração republicana e da intervenção no Iraque.
Nem de propósito, o editorial de José Manuel Fernandes da passada quinta-feira tinha o seguinte título: ‘Não foi Hillary que venceu anteontem, foi McCain’. Ora, a surpresa de terça-feira foi o regresso vitorioso de Hillary e não a anunciada confirmação de McCain como candidato republicano. Fernandes toma a ideologia por notícia. E, com irreprimível excitação, já prevê, aliás, que a ‘guerra fratricida entre os democratas que as vitórias de Clinton vão prolongar devolvem a McCain o sonho de chegar à Casa Branca’.
Percebe-se: McCain, homem de princípios e carácter, representa também a última oportunidade que resta aos republicanos, aos neoconservadores e a Bush para lavarem a face depois do desastre iraquiano e outros desastres que se foram seguindo. Apesar de ser o anti-Bush republicano por excelência, McCain é um cruzado indefectível da presença americana no Iraque. Nele reside, pois, a redenção possível.
Não ponho em causa o direito que assiste a José Manuel Fernandes de escrever o que escreve e defender as causas em que acredita. Tal como não questiono o seu direito e o da administração do Público de proceder à transformação do jornal em algo essencialmente diferente daquilo que foi nas suas origens já longínquas. São as regras do jogo: quem tem dinheiro e poder é que manda, como eu próprio me vi forçado a admitir quando a última administração do meu tempo – naturalmente mandatada pelo accionista – contratou uma equipa de assessores estrangeiros que se propunham impor ao Público a fórmula de um jornal regional escocês, entretanto falido. Demiti--me então civilizadamente em companhia de Jorge Wemans e, por sorte, o projecto escocês foi congelado. Mas, pelos vistos, as coisas mudaram muito a partir de então, desde que se aceitem as regras do jogo, ainda quando elas não são nada claras nem assumidas.
Precisamente, o que questiono não é sequer que as coisas sejam o que são – embora lamente a crescente asfixia da liberdade de imprensa em Portugal, mas que se procure disfarçar, escamotear e contrabandear a sua realidade. Tal como não imagino que o New York Times se transforme no Wall Street Journal ou vice-versa – sendo ambos eles, diga-se, excelentes jornais, embora de orientação editorial antagónica –, não me parece normal que um jornal que foi uma coisa passe a ser outra insistindo em fingir que o não é – enquanto alguns que criaram o Público se conformam temerosamente com essa aparente fatalidade. Aquilo que hoje afecta – por vezes muito injustamente, reconheço – a credibilidade do Público tem a ver com a falta de transparência e o carácter errático da sua linha editorial. É uma opinião, mas, como se sabe, está longe de ser apenas a minha opinião.



Publicado por vicentejorgesilva