segunda-feira, março 10, 2008

O Sol lava mais branco

Na Política a Sério (que sucedeu à não menos estimulante Política à Portuguesa, no Expresso), o Arq. Saraiva mostra-se, no sábado, impressionado com as travessuras a que vêm sendo sujeitos os “ricos”: “«Os ricos que paguem a crise», um slogan inventado pela UDP nos anos 80, é mais do que nunca actual.” Vejam-se os exemplos que nos dá:

    “Nos últimos meses desenvolveu-se uma espécie de cruzada contra os ‘ricos’, uma nova caça às bruxas, onde tudo o que mexe com dinheiro aparece envolto num manto de suspeição e hostilidade.
    A Operação Furacão foi um dos sinais desta cruzada.”

O pequeno arquitecto não sabe que houve transferência ilícita de capitais, com efeitos fiscais. “A principal vítima” [sic] foi o BES, diz Saraiva. E os outros três bancos, entre os quais o BCP, accionista do Sol?

    “A seguir veio o caso do Millennium BCP.
    A questão teve que ver com empréstimos feitos a accionistas, através de offshores, para comprarem acções do próprio banco.
    O expediente, não sendo ortodoxo nem recomendável, também não era propriamente [sic] fraudulento.”

Um banco empola artificialmente a cotação das suas acções. Milhares de accionistas adquirem essas acções com valores distorcidos, muitos deles através de empréstimos do próprio banco. Que será uma fraude para o pequeno arquitecto?

    “Devo dizer que os prémios de gestão ganhos pelos administradores do BCP sempre me pareceram exagerados, senão mesmo imorais. Mas isso é outra história. Até porque eram públicos e foram aprovados pelos accionistas.”

Os estatutos do BCP são “blindados”. A comissão de remunerações, cujos membros eram escolhidos por Jardim Gonçalves, é que fixava os proventos, que não serão assim tão públicos. Menos ainda eram os rendimentos em espécie.

    “A Estoril-Sol comprou um edifício à Parque Expo, remodelou-o à sua custa, pagou o que tinha a pagar — sendo, portanto, a legítima proprietária do imóvel.
    No entanto, uma lei que tem andado às cambalhotas previa, numa das suas versões, a entrega do edifício ao Estado ao fim de 20 anos.”

O recurso por parte do Arq. Saraiva ao “portanto” é genial: nenhum leitor que se preze poderia… portanto… ser assaltado pela mais leve dúvida sobre a legalidade do processo. Mas, se ainda assim houvesse algum leitor que se recordasse do “processo legislativo” que esteve na base da doação das instalações à Estoril-Sol, o Arq. Saraiva tem uma frase para baralhar o leitor: “uma lei que tem andado [sic] às cambalhotas”. Ainda há bocado a vi passar aqui da janela. O pior é que trazia as impressões digitais bem à vista.

O Arq. Saraiva explica ao que vem: “É preciso, portanto, haver gente com capacidade financeira e disposta a investir. Haver grupos com dinheiro e capacidade de iniciativa.” Ou seja, os citados “ricos” podem ter feito umas tropelias, mas, agora, ponha-se uma pedra no assunto — a bem da nação. Uma espécie de acumulação primitiva revisitada.

PS — Transcrevo o artigo do Arq. Saraiva na caixa de comentários, porque dentro de dias será retirado.

1 comentário :

Miguel Abrantes disse...

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Saturday, March 08, 2008 9:00 AM
Os ricos que paguem a crise
«Os ricos que paguem a crise», um slogan inventado pela UDP nos anos 80, é mais do que nunca actual.
Nos últimos meses desenvolveu-se uma espécie de cruzada contra os ‘ricos’, uma nova caça às bruxas, onde tudo o que mexe com dinheiro aparece envolto num manto de suspeição e hostilidade.
A Operação Furacão foi um dos sinais desta cruzada.
Centenas de empresas foram colocadas sob suspeita e apontadas à opinião pública como potencialmente criminosas.
As suas instalações foram invadidas, os seus arquivos vasculhados e os seus nomes divulgados.
A principal vítima, aqui, foi o Banco Espírito Santo – até porque, pouco depois, o seu nome apareceria envolvido numa operação ocorrida em Espanha.

A seguir veio o caso do Millennium BCP.
A questão teve que ver com empréstimos feitos a accionistas, através de offshores, para comprarem acções do próprio banco.
O expediente, não sendo ortodoxo nem recomendável, também não era propriamente fraudulento.
Mas a ideia que passou para a opinião pública foi a existência de um ‘escândalo’ de grandes proporções.
E a administração do banco foi quase apresentada como uma quadrilha de malfeitores.
Devo dizer que os prémios de gestão ganhos pelos administradores do BCP sempre me pareceram exagerados, senão mesmo imorais. Mas isso é outra história. Até porque eram públicos e foram aprovados pelos accionistas.

Agora quem está na linha de fogo é o Casino.
A Estoril-Sol comprou um edifício à Parque Expo, remodelou-o à sua custa, pagou o que tinha a pagar – sendo, portanto, a legítima proprietária do imóvel.
No entanto, uma lei que tem andado às cambalhotas previa, numa das suas versões, a entrega do edifício ao Estado ao fim de 20 anos.
Por via disto, a Estoril-Sol foi apontada como tendo tirado alguma coisa ao ‘bem público’.
Como tendo roubado um bem que era ‘de todos nós’.
Ora a verdade é exactamente a oposta: não faz sentido uma entidade comprar um edifício, fazer obras, e ao fim de um tempo ter de o entregar ao Estado.

Esta cruzada contra os ‘ricos’ tem assumido proporções paranóicas.
O país parece não perceber que a existência de grupos fortes, com capacidade financeira, é vital para o desenvolvimento.
Aquilo que em boa parte explica o atraso nacional é, de resto, a crónica ausência de uma sociedade civil forte, com grupos económicos, empresas e bancos robustos, capazes de tomar em mãos o progresso do país e o levar para a frente – à semelhança do que acontece nos países avançados da Europa.
A fragilidade da sociedade civil tem levado historicamente à excessiva concentração de poder no Estado, com a consequente inércia que daí decorre e facilitando regimes autocráticos prolongados, como o salazarismo.

É preciso, portanto, haver gente com capacidade financeira e disposta a investir.
Haver grupos com dinheiro e capacidade de iniciativa.
Ora a cruzada contra os ‘ricos’ só desincentiva o investimento.
Parece estranho que a intelligentzia não entenda esta realidade – fazendo mesmo muitas vezes o contrário e embarcando em campanhas populistas.
Ou talvez não seja tão estranho como isso, se se pensar que parte da intelligentzia tem uma cultura de funcionalismo público, pouco sensível à iniciativa privada e aos seus problemas.
Muitos comentadores trabalham em organismos públicos, em universidades, em departamentos de investigação ligados ao Estado, raramente têm experiência de trabalho nas empresas, sendo por isso mais sensíveis ao ‘interesse público’ do que aos interesses dos privados.
É de resto sintomático que a expressão ‘interesse privado’ tenha em geral uma conotação negativa.

Em Portugal está a criar-se um caldo de cultura perigoso.
Os ‘ricos’ sentem-se acossados – pelo que a disponibilidade para investir não é grande.
A elite intelectual não está preparada para formar uma opinião pública aberta, optimista e crente nas virtudes da sociedade civil.
A comunicação social revela tiques populistas, sempre mais disposta a discutir o escandalozinho do que a olhar para a frente e perspectivar o futuro.
Se o ambiente não mudar, os tempos que se avizinham não auguram nada de bom.