segunda-feira, abril 07, 2008

"Violência nas escolas não se resolve na Justiça"

Noronha do Nascimento, presidente do Supremo Tribunal de Justiça, dá uma extensa entrevista ao Jornal de Notícias. Merece ser lida na íntegra.

É evidente que, em várias passagens, a defesa da corporação dos juízes vem à tona (v.g., são genericamente bons rapazes e boas raparigas). Mas não pode deixar de se sublinhar a forma ponderada como Noronha do Nascimento dá resposta aos mais variados temas que lhe são colocados — sobretudo quando se faz uma comparação com a algazarra proveniente de círculos do Ministério Público, em especial por parte do sindicato do presidente vitalício António Cluny.

Eis alguns extractos da entrevista:
    Escolas

    Então os recentes problemas numa escola no Porto serão problema de disciplina ou de Justiça?
    É basicamente um problema de disciplina (…).

    Corrupção

    Existe tanta corrupção quanto se fala publicamente? É o discurso de políticos que dizem querer mudar leis, do procurador-geral da República, de alguns magistrados do Ministério Público...
    Eu meço a investigação toda pelos resultados. Isto é, o que se investiga, o que se acusou e o que deu condenação. Se uma investigação criminal é bem feita, normalmente leva a uma acusação e depois a uma condenação. Agora, dizer que há muita corrupção e depois, em termos de resultados finais, não se ver nada, das três hipóteses uma: ou não há; ou há e não houve investigação; ou há e a investigação foi mal feita e deu absolvição. É reprovável, mas eu não sei medir a corrupção. O juiz está na parte final da linha, quando os casos chegam a tribunal...

    Mas acha que existe exagero na percepção sobre a corrupção?
    Fazendo as contas às condenações finais é essa percepção que tenho.

    O discurso da corrupção será mais político do que judicial? Mesmo quando são os operadores da Justiça a protagonizá-lo?
    Isso é dar a entender que se vai agora fazer alguma coisa. Aí, será o desfasamento entre o discurso e a realidade. O que aparece em tribunal deve ser medido. Dizem que o “icebergue” é muito grande e não se vê...

    Quem tem responsabilidade de fazer aparecer o resto do icebergue da corrupção?
    É quem investiga. Se é que existe icebergue! A investigação criminal é feita para averiguar se houve ou não crime, no caso de haver, descobrir o seu autor e levar a julgamento. Não é para meter medo. Não é para fixar comportamentos éticos. Não é para dizer: “vamos investigar, certamente não vamos apurar nada, mas o facto de investigarmos faz com que as outras pessoas fiquem com medo”.

    Conflito Norte-Sul no MP e regionalização

    Existe actualmente um conflito Norte-Sul no Ministério Público (MP). Como tem observado esta situação?
    Não sei se há propriamente um conflito no seio do MP. O que sei é que o nosso país está estruturado em três patamares. Lisboa, segundo patamar o Porto e em terceiro o resto do país. É um país extremamente concentrado em termos de decisão, sejam políticos ou não. É uma tradição antiga, que tem funcionado de maneira prejudicial. Porque na Europa ninguém raciocina assim. Da Europa dos 15 só dois países, Portugal e Grécia, não fizeram a regionalização. Curiosamente, são os mais atrasados da União. Sempre fui contrário às grandes concentrações de poder. A concentração de tudo numa mesma zona permite um controlo maior. Se tudo estiver em dez locais é mais difícil o controlo e o empenhamento das pessoas desses dez sítios é maior do que se estiver num só. Por exemplo, as grandes investigações em Itália partiram da zona de Milão ou de Palermo – não de Roma.

    Conflito entre o MP e a PJ

    E como tem analisado o conflito latente entre o MP e PJ?
    (…) O sistema de investigação criminal está estruturado em três pilares. O juiz de instrução para assegurar os direitos fundamentais dos arguidos; o MP, que coordena o inquérito; polícia, que faz a investigação. Estes três pilares são autónomos, não pode haver controlo de um por outro. É impensável que quem controla o inquérito queira controlar a Polícia, tudo ao abrigo de um segredo de justiça em que ninguém pode entrar. Se não há uma investigação criminal feita por juízes, então tem de manter-se o sistema assim. O grande perigo é a perda do distanciamento suficiente para fazer uma valoração dos indícios independente.

    Vê uma tentativa de controlo sobre a PJ?
    Não é uma situação nova. O perigo de um dos pilares tentar controlar outro é quase permanente. Permitir a sucção de investigadores da PJ para o interior do MP é uma maneira sub-reptícia de fazer a fusão entre as instituições. Uma forma de os três pilares perderem o equilíbrio entre si.

    Mapa judiciário

    O que vai trazer de bom o mapa judiciário?
    O que está no projecto é bastante aceitável. O novo desenho pode trazer ganhos em termos de gestão e eficácia. Vamos testá-lo. A grande novidade é haver um juiz-presidente, que terá poderes em relação a funcionários.

    Alterações legislativas não se fazem na praça pública

    As sugestões do presidente do Supremo são atendidas pelo poder político aquando de alterações legislativas?
    Com frequência. Já houve sugestões que não foram atendidas, mas uma percentagem muito grande de vezes tenho sido ouvido e com algum sucesso.

    Até que ponto é legítimo aos operadores judiciários fazer propostas de alteração após a publicação de leis de que discordam?
    Quem tem a competência para alterar, altera ou não altera...

    É que vários operadores judiciários têm pedido alterações aos códigos penal e de processo penal.
    Aí, concordo com o ministro da Justiça. Uma lei aprovada tem de, no mínimo, ser testada. Dou um exemplo: a redução das férias judiciais. Eu acho que foi um erro, mas só terei a certeza depois de a lei ser testada, para ver como funciona. A lei foi aprovada há dois anos, pode-se começar a fazer um juízo hoje...

    Segredo de justiça

    Uma das grandes críticas tem a ver com o segredo de justiça.
    Não estou em desacordo, porque concordo com o reforço dos poderes do juiz de instrução. Tem de salvaguardar os interesses da investigação e o direito dos suspeitos a elementos fundamentais para a sua defesa. A análise equidistante tem de ser do juiz.

    Mas isso parece causar dor ao Ministério Público.
    Isso já é outro problema. Estou a falar daquilo que considero importante.

    Poderes do MP

    Está de acordo com limitações de poderes ao Ministério Público?
    Estou de acordo com o aumento dos poderes do juiz sempre que há confronto de interesses de ambas as partes. Ninguém é dono do inquérito. Este é o meio processual para se fazer a investigação de um crime. E em termos processuais as regras têm de ser iguais.

    Processo Casa Pia

    Comunga da ideia de que os novos códigos foram mudados em consequência do processo Casa Pia?
    Não discordo das alterações ao Código de Processo Penal. Porque elas alargaram o poder intervenção do juiz e eu defendo que a investigação criminal deve ser centrada no juiz. O inquérito é complicado porque por um lado o arguido não pode ser apresentado ao juiz completamente às escuras sobre o que vem acusado. Por outro lado, não pode ter acesso a tudo por causa da eficácia da investigação. Tem de se encontrar um meio termo. Gosto dos sistemas que restringem ao máximo a prisão preventiva.

    Então é a favor que se investigue primeiro e prenda depois?
    Sim. Aqueles crimes em que os suspeitos tinham de ir logo para a cadeia, como antigamente, acabaram. Muitas vezes os crimes são fáceis de investigar, como os passionais. Em relação a outros, a prova é mais complicada, como os crimes financeiros.

    Desjudicialização da justiça

    Então está de acordo com medidas de desjudicialização da justiça, como faz o Governo?
    Estou (…).

    Mas afinal o que define como “lixo”?
    Tem a ver com acções de dívida, daquilo que há 20 anos para cá tem surgido... as sociedades financeiras, os telemóveis. Tudo aquilo que leva ao endividamento familiar. Isto é consequência directa de uma política de consumo fácil. E depois, nos tribunais, somos confrontados com questões que são quase burlas aos cidadãos. Uma das medidas muito bem tomadas do governo foi obrigar as empresas a colocar as acções nos tribunais da residência do devedor. O que fez com que o Porto e Lisboa deixassem de ser os centros de todas essas acções. Isso implica aumentos de custos às próprias empresas e um redimensionamento das suas próprias previsões no sentido de saber se muitas dessas acções se justificam. Mas, antes disso, saber se vale a pena dar crédito.

    Então, além de mecanismos para resolver os problemas fora dos tribunais, defende que deve haver mecanismos de controlo das dívidas...
    Devia haver um sistema de responsabilização das empresas que concedem crédito ao consumo e mecanismos de regulação social que impeçam o crédito fácil (…).

    Está contra o uso dos tribunais pelas grandes empresas?
    Já viu alguma grande empresa dizer mal dos tribunais? Concedem créditos, há problemas, mas a grande maioria deles acabam por ser cobrados. Em empresas com grande capacidade financeira, o juro cobrado compensa perfeitamente o tempo de espera.

7 comentários :

Luis M. Jorge disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Luis M. Jorge disse...

Resumindo e concluindo, a corrupção em Portugal é "um exagero" (deve ser por isso que as leis do PS foram tão generosas) e devemos acabar com as prisões preventivas dos suspeitos de pedofilia (principalmente se forem do PS). Farto-me de aprender consigo, Miguel.

Anónimo disse...

O que o Senhor Dr. Miguel Abrantes agora vem reconhecer - embora envergonhadamente - é que os juízes fizeram bem quando elegeram o Presidente do Supremo ... e que outros fizeram mal quando nomearam a trombeta da Escola Ploitécnica ...

Anónimo disse...

O cluni e a sua corte devem estar com as orelhas arder.

Este sr. mostra saber do que diz, claro e directo. Os portugueses entendem perfeitamente onde quer chegar.

Anónimo disse...

voltou a censura

Anónimo disse...

Censura porquê?

Anónimo disse...

Esta entrevista tem dois aspectos muito importantes,que são críticas subtis ao governo (e aos grandes paladinos da luta contra a corrupção dos nossos dias e que nada fazem, em concreto), apesar de surgirem misturadas com elogios a algumas das alterações legislativas.
Chama-se a isto objectividade e isenção.
1º Aspecto:
A loucura sobre a corrupção. Falam, falam, mas não dizem nada, e menos fazem.
O texto é claro, se existe, investigue-se (esta vai para o MP se mexer).
2º Aspecto:
Concorda com o ministro em como as leis devem ser testadas, para depois lhe lançar a farpa: já estamos a tempo de avaliar a alteração às férias judiciais!!! Avaliemo-la agora!!! Ganhou-se alguma coisa? Trabalhou-se mais? Ou será que magistrados e advogados trabalhavam mais durante o período das férias judiciais e tiravam 15 dias de férias pessoais, e agora passaram a gozá-los do 1º ao último dia? A fórmula mágica apresentada como panaceia para os grandes males da justiça - o excesso nde férias e calandrice dos que por lá andam - deve ser agora avaliada e pelos números, que é como o governo gosta.
Os processos diminuiram proporcionalmente ao aumento de tempo de abertura dos tribunais?
Gostava de ter visto os assessores do Ministro, de 25 a 29 anos, sem experiência profissional (colar cartazes e figurar em comícios não conta, não serve?) no momento em que descobriram a pólvora, julgando ser mais espertos do que todos os Ministros da Justiça anteriores, que nunca lançaram mão da redução das férias judiciais.
"É pá, os gajos só trabalham dez meses por ano!! Se os obrigarmos a trabalhar onze isto vai ser mais rápido e eficaz."
Por isso, o governo só tem de demonstrar que houve um aumento de eficácia proporcional devido à supressão de um mês de férias judiciais...é fazer as contas.
Note-se que eu sou a favor da redução, mas sou contra a forma como a mesma foi apresentada, como um castigo. Aliás, este governo é o melhor de todos a chamar calões às pessoas que trabalham em geral, e especialmente aos que o servem.