quinta-feira, abril 15, 2010

Os desempregados e os pobres merecem uma lição — e o Vasco Campilho garante que Passos Coelho a vai dar



Na segunda-feira, enquanto tomava um café depois de almoço, não consegui deixar de ouvir a conversa de uns adolescentes na mesa ao lado. Riam-se de uma situação insólita, que era mais ou menos assim: um amigo acabara de tirar a carta e, numa das primeiras vezes que resolveu aventurar-se no carro dos pais, bebeu de mais e, no regresso a casa, foi apanhado numa operação stop com 1,7 de álcool no sangue. Resultado: lá tinha que fazer umas tantas horas de trabalho comunitário.

Ouvi isto no preciso momento em que virei a página do jornal e leio que Pedro Passos Coelho propõe que as pessoas que recebam prestações sociais — tendo referido explicitamente o subsídio de desemprego e o rendimento social de inserção — passassem umas horas a trabalhar para a comunidade, enquadradas, se bem percebi, por instituições de solidariedade social.

Vale a pena debater o que está aqui em causa — e o Vasco Campilho tem esgrimido alguns argumentos em defesa deste “tributo social” (aqui e aqui). No primeiro texto, o tributo social começa por ser “um instrumento contra a fraude”, depois a justificação passa a ser de “justiça simbólica” e termina regressando à função que “deve cumprir”, que é punir quem não quer trabalhar (os tais “profissionais da maximização da assistência pública”). A lógica é mesmo essa: a de punição.

O segundo texto é uma espécie de resposta aos críticos: “A crítica que mais tenho visto ser feita à proposta de instituir o tributo social é a seguinte: se é em virtude dos seus descontos que os desempregados recebem o subsídio de desemprego, então nada devem dar de volta à sociedade, visto que apenas recebem aquilo a que têm direito.”. A isto riposta que afirma que os direitos não são adquiridos, e que o Estado pode alterar “unilateralmente as condições propostas aos beneficiários, e que não verdade o tem feito várias vezes.

Bom, não sei quem dirigiu esta crítica à proposta do tributo social — mas isto não é uma crítica nem um contra-argumento. Não passa de um tiro de pólvora seca, e a resposta do Vasco Campilho é uma lapalissada. É óbvio que o Estado altera as condições de inúmeras prestações — mas o mesmo acontece com várias políticas públicas que acabam por frustrar as expectativas dos cidadãos —, tendo para isso os Governos legitimidade democrática.

O que não é legítimo é fazer de conta que estas prestações, que obedecem a filosofias diferentes, sejam tidas como assentando numa lógica de solidariedade de direcção única, como se não pedissem nada em troca. Ora, este é precisamente o ponto que, do primeiro para o segundo texto, Vasco Campilho aceita, mas sem nunca reconhecer que o faz: é que o subsídio de desemprego e o rendimento social de inserção já implicam contrapartidas.

O primeiro é um seguro social que, por ser público, não funciona segundo a lógica actuarial, mas não deixa de ter as características típicas de um seguro: pessoas que descontam mais e há mais tempo têm condições de segurança, em caso de necessidade de apoio, que outras que descontaram menos e há menos não têm. Há mesmo quem desconte e não preencha, apesar de tudo, as regras que lhe permitam o acesso ao seguro, e quem não tenha descontado de todo e que, por isso, não beneficia naturalmente dele. Não há, portanto, aqui nada que se assemelhe a uma situação de something for nothing. As pessoas descontam; se um dia precisarem de apoio, têm-no. Afirmar que as pessoas que recebem subsídio de desemprego precisam de contribuir para “Portugal”, como fez Passos Coelho no congresso de Carcavelos, é pura demagogia ou revela ignorância.

O rendimento social de inserção é, por outro lado, uma prestação não contributiva que pretende garantir mínimos sociais e económicos e satisfazer as necessidades básicas dos indivíduos, mas — algo que é sempre omitido nas críticas à prestação — assenta na ideia de um contrato entre o indivíduo e o Estado. Isso mesmo, um contrato. Um toma-lá-dá-cá. O outro lado da prestação pecuniária a que os indivíduos têm direito é o programa de inserção sócio-profissional que os beneficiários são obrigados a subscrever; este programa de inserção sócio-profissional é um compromisso segundo o qual aqueles são obrigados (salvo motivos de saúde ou idade) a mostrar disponibilidade activa para o trabalho, para a formação ou para outras formas de inserção que se revelem adequadas. Das acções inscritas no programa de inserção fazem parte, por exemplo, a “aceitação de trabalho ou de formação profissional; frequência do sistema ou de aprendizagem; participação em programas de ocupação ou outros de carácter temporário que favoreçam a inserção no mercado de trabalho ou satisfaçam necessidades sociais”, etc. E há situações de incumprimento e há regime sancionatório: situações em que a recusa em respeitar as condições levam à sua suspensão. O programa não oferece something for nothing.

Por outras palavras: a reciprocidade — a tal “solidariedade em duas direcções” que Pedro Passos Coelho defende — já existe para ambas a prestações, mas é diferenciada por razões várias (aliás fáceis de perceber, como a capacidade distinta para diferentes indivíduos em encontrar inserção durável no mercado de trabalho).

Claro que o Vasco Campilho pode ignorar esta discussão toda e dizer: “Isto é tudo muito bonito mas funciona mal, presta-se à fraude por ausência de mecanismos de fiscalização, e gera inveja social”¹.

É aqui que esquerda e direita, ou melhor — como o João Pinto e Castro bem lembra —, que as políticas sociais de diferentes épocas e exigências civilizacionais se separam.

Há uma diferença entre, por exemplo, ser obrigado a mudar as regras de acesso ao subsídio de desemprego ou de emprego conveniente, reduzir a taxa de substituição, obrigar as pessoas a passar mais tempo a fazer formação ou aumentar a fiscalização. A isto, em diferentes doses, chama-se workfare (com graus também variáveis de generosidade para o beneficiário) e pode ser justificado por motivos diferentes (a taxa de substituição pode ser muito elevada em alguns casos — levando a que as pessoas prefiram racionalmente não regressar a um mercado de trabalho que paga mal e trata pior, e pode ser necessário mexer nos incentivos existentes; o orçamento da segurança social pode passar por sérios problemas financeiros que exigem uma redução nas prestações, etc.).

Porém nenhum destes motivos contempla o objectivo de punir os desempregados ou os pobres. Nenhum destes motivos faz regressar uma lógica de trabalho gratuito, numa situação que se pretende tão humilhante de modo a que “para muitos poderá mesmo valer a pena desistir do subsídio para se poderem continuar a dedicar ao ofício que com ele acumulavam”, como escreve o Vasco Campilho. Na realidade, esta era a verdadeira justificação das fétidas workhouses britânicas (outras justificações, como a que aquelas ajudariam a promover uma regeneração moral, era quase sempre bullshit): se elas fossem realmente estigmatizantes — ou provocassem “dor” num sentido lato, dado que estávamos no auge do utilitarismo —, então o indivíduo depressa voltaria ao mercado de trabalho, porque qualquer biscate seria melhor.

É por isso que, vendo bem, não há praticamente diferença entre o tratamento que damos hoje àqueles que são apanhados a conduzir embriagados e aos que o Pedro Passos Coelho propõe para os desempregados e pobres. Ambos merecem uma lição.

_________
¹ A estratégia é velha, mas sempre actualizada: a justificação e a retórica que Pedro Passos Coelho e os seus acólitos usam, esfregando as mãos, para inflamar a inveja social que, ao invocarem, inflamam, foi há um par de anos habilmente usada por Sarkozy, que evocava “la France qui se lève tôt” para roubar votos a Le Pen. E como o PSD precisa de recuperar eleitorado a Portas…

5 comentários :

PMatos disse...

Não posso deixar de estar de acordo com quase tudo o que aqui foi dito. É verdade que ambas as situações são, nada mais, do que dois contratos tácitos, entre o indivíduo e o Estado. E da forma como aqui foi descrita.
Lamentável é como estas situações são tratadas pelos jornalistas e, pior, pelos políticos. Revelam uma enorme falta de verdade. Mesmo a "chacota" que habitualmente se faz com o Complemento Social para Idosos quando são atribuídos valores de 1 euro. É que as pessoas não sabem que o facto de um idoso ter direito a esse 1Eur de CSI implica imediatamente outras coisas, e.g. comparticipação a 100% em medicamentos assim como outras ajudas sociais.
Ignorância? Maldade?... não sei, mas gostava de perceber! Lá que as TV's gostam, lá isso gostam.

Mas, na minha concordância, existe um "quase". E isso é por conhecer casos em duas situações. Um amigo que recusou (há uns anos, verdade seja dita) uma proposta de emprego (não através do Centro de Emprego) porque o vencimento que lhe propunham era inferior ao que recebia como subsídio. E continuou até "esgotar" o tempo a que tinha direito ao referido apoio.
Há uns dois anos (mais coisa, menos coisa) uma reportagem no Expresso dava a conhecer um caso corroborado por uma associação que havia trabalhado seriamente para que um comerciante num determinado bairro em Lisboa re-empregasse uma mãe solteira sem rendimentos. A custo, o comerciante cedeu à pressão dessa associação e aceitou que a senhora voltasse ao seu emprego com remuneração perto dos 500Eur (creio) mas no dia em que acordaram todos as condições (comerciante, associação e ex-empregada) a senhora que ia ter um trabalho remunerado recebeu uma carta da SS a informar o deferimento do seu RSI no valor de 400Eur (aprox). Escusado será dizer que prescindiu do trabalho remunerado para aceitar o apoio do Estado.

Se é falta de fiscalização não sei. Mas, ainda que não sejam a sua maioria, situações destas acontecem com alguma regularidade.
Penso que leis, mecanismos ou fiscalização não funcionam cada uma por si. Só uma boa coordenação destes 3 aspectos pode funcionar.

E para isso temos que ter uma classe política séria e com vontade de encontrar as melhores soluções.

Dificilmente isso acontecerá quando o mecanismo para lidar com estes temas for sempre a Demagogia.

Martins disse...

Gosto, muito particularmente, deste extracto colhido no blog do Campilho:

"Acabei por não ter direito à tal adolescência miserável que me esperava, porque aos doze anos embarquei à descoberta da Europa. Fiquei-me por uma adolescência deprimente, à sombra das nuvens de Bruxelas. Na Escola Europeia, liceu multi-nacional por excelência, fiz-me razoavelmente poliglota… e ardentemente patriota. O que não me impediu de namorar uma francesa com lenço Hermès ao pescoço."

Quando se fala de um qualquer mensageiro, isso na maior parte das vezes significa uma determinada impotência em relação à mensagem do mesmo, mas no caso em apreço venha o diabo e escolha.

Martins disse...

Qual será o tipo de penalização social que o Campilho encontrará para os muitos utilizadores fraudelentos de recursos públicos que não sejam pobres??

Inibição de frequentar as capas da "Lux", "Caras" ou outras que tal???

atom disse...

É rematadamente insensata a proposta do Sr. Passos Coelho para obrigar os cidadãos que recebem subsídio de desemprego, a prestarem trabalho social gratuito.
Introduzir cinquenta ou sessenta mil trabalhadores gratuitos no mercado social de emprego iria provocar uma enorme vaga de desemprego, nas pessoas que desempenham essas funções remuneradas. Esses novos desempregados iriam receber subsídio de desemprego e seriam novos trabalhadores gratuitos. Assim iriam desempregar outros trabalhadores remunerados etc. etc. etc.
A proposta do Sr. Passos Coelho, do ponto de vista económico é um disparate...
Em sentido contrário vai a proposta da criação de uma estrutura para escrutinar os candidatos a gestores públicos. Neste caso cria-se emprego de qualidade e bem remunerado para um distinto ex Presidente da República e alguns distintos magistrados de Tribunais Superiores. Apesar desta intenção de criar empregos de qualidade serem meritórios, devemos contrapor o seu número exíguo, e quanto a resultados que poderemos esperar dos gestores escolhidos por esta estrutura, estamos conversados...

Piedade BS disse...

Estou desempregada mas, felizmente,não tenho direito a subsídio de desemprego. Escuso de me submeter à humilhação das apresentações quinzenais (tenho amigos desempregados e é quase tão mau como ter que se apresentar na esquadra) nem à ficção de obter papeis que comprovem a procura activa de emprego. Como toda a gente sabe NÃO HÁ EMPREGOS e as empresas não se dão ao trabalho de responder às nossas cartas, pelo que é preciso pedinchar papéis a amigos e conhecidos. Pelos vistos, não recebendo subsídio e não devendo nada à p... do Estado evito também ser castigada por estar desempregada!