- “P: Tivemos dificuldade de competir com os novos países de Leste que se integraram na UE e que têm uma mão-de-obra bastante mais educada.
R: Temos aí um bloqueio. Há tempos fiz contas e cheguei à conclusão de que a geração que já nasceu depois de Abril continua a ter um desfasamento significativo na sua formação em relação ao resto da Europa, o que significa que esses resultados já não são da pesada herança. Temos um problema sério. O ensino não é suficiente exigente. E, por outro lado, creio que existe um problema cultural que é a falta de ambição. Uma das razões por que temos uma das mais elevadas taxas de abandono escolar tem a ver com a falta de ambição. Os miúdos chegam a uma determinada idade, arranjam o emprego com o salário mínimo e não estão para se aborrecer.”
Na entrevista a Teresa de Sousa, no Público de ontem, Vítor Bento dá a sua explicação para o facto da recuperação do nosso atraso nas qualificações ser lento. Parte do problema, diz, é a falta de “ambição” dos jovens.
Há várias formas de olhar para uma afirmação deste tipo. Uma é dizer que é um preconceito. Sempre que vejo invocados “problemas culturais” para explicar um sem número de fenómenos, fico com a sensação de que não se tem mais nada para dizer. Na ausência de qualquer outro factor, o problema é “cultural”.
Vítor Bento diz que fez umas contas. O problema é que deve ter feito poucas comparações, deve ter-se esquecido de fazer umas simples correlações para descobrir alguns padrões, e por isso não avançou um milímetro nos mecanismos explicativos. Nada mais resta do que o problema ser “cultural”.
Há, felizmente, muitos factores explicativos já estudados, e posso voltar, noutra altura, a este problema para mostrar como este visão do problema é tão curta que chega a ser errada. Para já, deixo uma correlação muito simples entre a taxa de abandono escolar precoce (indivíduos com idade entre 18 e 24 anos, sem o secundário completo, que completou o 3.º ciclo de escolaridade ou não, e que não estão inseridos em qualquer programa de educação/formação, no eixo horizontal, eixo horizontal) e o índice de Gini (que varia, no eixo vertical, entre 0 e 100, embora, em bom rigor, devia variar entre 0 e 1) em 24 países da União Europeia. O ano é 2004 porque é o último para o qual encontrei dados comparáveis nas estatísticas do Eurostat. O valor da correlação é muito razoável (r = 0.57, varia entre 0 e 1): países mais desiguais tendem a ter taxas de abandono escolar precoce mais alta. A correlação não é ainda mais forte porque um conjunto de países do Leste europeu (Polónia, Lituânia e Letónia) fogem um pouco ao comportamento expectável; para o seu nível de desigualdades, a sua taxa de abandono é muito boa, o que é facilmente explicável pela centralidade da escola nos países ex-comunistas. Sem estes três outliers, a correlação atinge o impressionante valor de 0.78.
Ou seja, o comportamento deste indicador de desempenho dos sistemas educativos – a taxa de abandono escolar precoce, que é um dos indicadores estruturais da Estratégia de Lisboa – não pode ser compreendido sem termos em conta os níveis de desigualdade internos a cada país. É fácil perceber os mecanismos que explicam este efeito, a começar pela desvalorização da cultura escolar pela família – quase sempre provocada pela distância relativamente a esse universo livresco e que nada diz a muitas famílias, cujas qualificações são também muitas vezes baixas -, passando pelo efeito de interação com os amigos – que não percebe o efeito de interacção entre crianças e adolescentes na formação de uma cultura anti-escolar contra os “marrões”, que ajuda a integrar os mais novos num colectivo e que exclui a estudo e a aprendizagem dessa referência identitária, e terminando no efeito atractor do mercado de trabalho desqualificado. Quando Bento diz que “[o]s miúdos chegam a uma determinada idade, arranjam o emprego com o salário mínimo e não estão para se aborrecer”, não compreende que este comportamento é o resultado de anos de afastamento progressivo, muitas vezes de luta colectiva contra a cultura escolar, mas também o resultado da busca – que tem o seu quê de ilusório e encantatório – da autonomia que o “primeiro salário” representa, facilitado por um mercado de trabalho esponjoso e que “seduz” e absorve uma população com baixas qualificações precisamente porque é ele próprio pouco exigente em competências e diplomas. Isso ajuda a explicar o facto de todos os indicadores – taxa de escolarização, anos de escolarização esperada, abandono escolar precoce – serem mais negativos no Norte do país, onde a economia o peso da construção civil e da indústria que exige competências pouco especializadas é superior, por exemplo, à área metropolitana de Lisboa. Este fenómeno até tem um nome: chama-se “equilíbrio das baixas competências” (isto é, o equilíbrio perverso que se estabelece entre as qualificações produzidas pelo sistema escolar e aquelas que são procuradas pelo mercado de trabalho; quem quiser saber mais sobre isto, pode consultar isto).
Esta explicação, que invoca uma série de mecanismos poderosos e plausíveis, dispensa qualquer o recurso a um estranho “problema cultural”, essa entidade que ninguém sabe muito bem o que é nem como mudar. Por isso, a única saída é tentação do moralismo fácil: “Eles” não têm ambição, que é o primeiro passo para concluir que, no fundo, são uns preguiçosos e preferem a mandriagem.
A má notícia disto tudo, claro, é que as desigualdades - apesar de terem descido nos últimos anos fruto das políticas redistributivas implementadas pelos governos do Partido Socialista – são uma variável avessa a grandes mudanças rápidas. A boa notícia, porém, é que há outras políticas para reduzir o abandono escolar precoce, como a aposta no ensino profissional e o reforço da capacidade das escolas responderem aos casos de maior risco de abandono. Os avanços feitos nesses domínios ajudarão a explicar a impressionante redução que se registou, ao longo da legislatura anterior, nos valores do taxa de abandono escolar precoce, que atingiu os 31,2% em 2009, contra 39,2% em 2006 (ver quadro seguinte).
Vítor Bento bem disse a Teresa de Sousa que um dos problemas do país é que o espaço público ser ocupado por muitos que “falam do que não sabem e é isso que faz com que nos habituemos a discutir sem argumentos sustentados nem quantificações”. Vítor Bento é um economista qualificado, mas por vezes há “opiniões” sobre matérias tão importantes que não se compaginam com tão infundados preconceitos.
1 comentário :
O Vítor Bento não passa de um contabilista graduado. Provavelmente pela mesma escola do de Belém. É que dar opiniões económicas mormente de macroeconomia carece e formação sociológica, e não só!1 Carece de cultura geral!!! Não basta saber fazer contas é necessário estabelecer a correlação entre os factores, como faz o Pedro T.
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