quinta-feira, julho 29, 2010

"Um contacto com a realidade preveniria a imaturidade das propostas de Passos Coelho e a toxicidade ideológica de alguns conselhos que recebe"


Agora, já são mais de 31 anos...


• António Correia de Campos, Os liberais e a saúde (no Público de ontem):
    O dr. Pedro Passos Coelho (PPC) propõe-se rever a Constituição. Na Saúde pretende substituir a quase gratuitidade do acesso ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, pela expressão "não podendo, em caso algum, o acesso ser recusado por insuficiência de meios económicos". Parece o mesmo, mas é radicalmente diferente. Hoje, há um direito à gratuitidade, excepcionado por taxas moderadoras que incidem apenas sobre 45 por cento dos utentes. Na mudança de PPC a gratuitidade deixaria de ser a regra e passaria a excepção, quando se reconheça insuficiência de meios económicos. Invertem-se objectivos e valores.

    Os argumentos de PPC são aparentemente sedutores, mas não resistem à análise económica nem à análise política, mesmo que por padrões da social-democracia. Desnudam uma certa imaturidade.

    Argumento 1: para prevenir o risco de insustentabilidade financeira, o SNS iria cobrar aos utilizadores directos um co-financiamento. Ora, a cobrança no ponto de encontro do utente com o sistema detém sempre procura, sobretudo a que corresponde a reais necessidades. Cobrar a pobres seria injusto. Isentá-los, mediante indagação da respectiva insuficiência de meios económicos, lembra os "Inquéritos Assistenciais" de má memória e o estigma divisor que arrastavam. O SNS não é financeiramente insustentável, como se demonstrou no Governo anterior. Insustentáveis são os sistemas de seguro-doença baseados em convenções com prestadores privados, como os sistemas continentais europeus (francês, alemão) e, no limite, o dos EUA.

    Argumento 2: injustiça da gratuitidade para ricos; os utentes deveriam pagar serviços do SNS, quando deles se servem, em termos proporcionais aos seus rendimentos: o SNS não é um redistribuidor fiscal, mas sim um equalizador social, como demonstrou a sua história de 32 anos. Levou-se saúde de boa qualidade a todos os cantos do país e a todas as classes sociais, com acesso diferenciado àqueles em maior risco, obtendo-se excelentes resultados. Até comentadores habitualmente destrutivos reconhecem que foi na Saúde que mais avançou o Estado Social. A gratuitidade aos ricos é apenas um custo da cidadania.

    Argumento 3: um sector privado prestador em concorrência com o SNS melhoraria todo o sistema. Nada de mais falso. O sector privado deve ser complementar, articulado com o SNS, como bem refere a Constituição. Não um seu substituto regular. O SNS tem servidões inalienáveis: formação de pessoal, investigação, urgências, impossibilidade de despedir pessoal por mudança tecnológica, obrigação de liderança na qualidade, incompressibilidade da oferta ditada pela obrigação de oferecer todas as prestações. Os custos de funcionamento reflectem essas servidões, a concorrência aberta do privado levaria à desnatação e à rápida degradação do SNS. Acresce que o sector privado induz procura desnecessária, gerando ineficiências a pagar pelos contribuintes. Concorrência desigual, dividindo o sistema em SNS para pobres e clínicas privadas para ricos. Finalmente, um sector privado vitaminado pelas convenções procuraria a faixa litoral e os grandes centros urbanos, duplicando cobertura, gerando redundâncias e ineficiências, abandonando o interior ao sector público. Desigualdade geográfica a acrescer à social.

    Argumento 4: PPC recusa reduzir as deduções fiscais na Saúde com o argumento da dupla tributação. Aqui o caso é mais grave e maior a contradição. São os mais influentes que usam, de forma mais que proporcional em relação ao seu rendimento, as deduções da Saúde (e da Educação). Os 45 por cento de portugueses que nada pagam de IRS não têm acesso a este benefício. No entanto, pagam IVA, cobrindo com este imposto esta perda de receita fiscal. Um estudo recente estimava em 500 milhões de euros o custo orçamental das deduções fiscais de despesas privadas de saúde, sendo Portugal o País mais "generoso" para os felizes beneficiados.

    Não podemos deixar de entender que todos estes argumentos se ligam: a teimosia de PPC em não querer reduzir as deduções fiscais, afinal, combina-se com o impulso protector que visa oferecer ao sector privado na Saúde. Ambos corrosivos para o SNS. O SNS tem que ser gerido com rigor e eficiência e modernizado a cada passo, evitando desperdício. PPC precisa de conhecer melhor a Saúde dos portugueses, visitando hospitais, unidades de saúde familiares e de cuidados continuados a idosos. Um contacto com a realidade preveniria a imaturidade das suas propostas e a toxicidade ideológica de alguns conselhos que recebe.

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