sábado, junho 08, 2013

Ovo ou elipse — a incerteza no Estado Novo


Saraiva, o pequeno grande arquitecto do outrora mui luminoso Sol, descreve — na Tabu, pp. 72-73 — o seu percurso no ensino elitista do Estado Novo, procurando dar elementos ao leitor para perceber uma questão pertinente: como é um sobrinho de um ministro da Educação do marcelismo se forma em arquitectura e termina a sua vida a aviar linguados para a Newshold? O próprio sobrinho parece ainda não ter uma explicação cabal: “tive a noção plena de como a vida é aleatória.” Leia-se a prosa:
    Na Escola de Belas-Artes de Lisboa, onde me formei em Arquitectura, tinha duas cadeiras que, no mesmo ano, eram dadas pelo mesmo professor. As cadeiras eram Estereotomia e Teoria de Sombras e Perspectivas. Na Estereotomia apreendiam-se coisas como o desenho das pedras ou o corte das madeiras numa construção: o porquê de uma determinada forma, os sistemas de encaixe, a função de cada peça no conjunto da obra. Na Teoria de Sombras e Perspectivas - como o nome indica -, estudava-se tudo o que se relacionava com sombras, focos de luz e sua incidência, projecções de uns sólidos sobre outros, e ainda as regras dos vários tipos de perspectivas.

    O professor era um arquitecto de nome Vítor Manuel Piloto, um profissional da velha guarda, convencional, académico, da escola de Raul Lino, que repetia ano após ano monotonamente a mesma sebenta.

    No ano em que frequentei aquelas cadeiras, as provas orais eram em dias sucessivos. Sem tempo para me preparar convenientemente para ambos os exames, estudei afincadamente para o primeiro e abandonei o segundo à sua sorte. A ideia era causar uma boa impressão num dia — e ganhar 'crédito' para o dia seguinte.

    Lá compareci na data aprazada para o primeiro exame, subi ao estrado e o velho professor mandou-me desenhar a giz, no quadro preto, uma elipse. Lá desenhei com a mão tremer, numa pilha de nervos (as provas orais para mini eram um suplício) - e, quando acabei, o professor disse-me:
      - Isso não é uma elipse!
    Olhei para o quadro, franzi os lábios e retorqui, sem perceber a observação:
      - Sim, é uma elipse...
      - Não, não é uma elipse. Isso é um ovo! — atirou o velho mestre.

    A coisa começava mal. E como 'o que torto nasce tarde ou nunca se endireita', o resto do exame foi uma lástima. No fim, fiquei convencido de que chumbava.

    Quando terminavam os exames, os alunos esperavam à porta da Escola, no Largo da Biblioteca Pública, ao fundo da Rua Ivens, ao Chiado. Normalmente as notas demoravam meia hora a ser afixadas. Mas daquela vez esperei uma hora, duas horas — e só então apareceu a pauta. Olhei para ela, sem grandes esperanças, mas tive uma boa surpresa: tinha passado, embora com um medíocre 10. Mais tarde alguém me diria que a nota fora muito discutida — e só não me tinham chumbado por eu ser sobrinho do ministro da Educação (o meu tio José Hermano Saraiva).

    Fui para casa pensando: 'Se isto correu tão mal numa cadeira em que eu sabia a matéria, como será amanhã, em que não sei nada?'.

    Estive quase a desistir. Mas acabei por ir: não tinha nada a perder. No dia seguinte, subi outra vez ao estrado e o professor disse-me:
      - Desenhe uma parábola...

    Pus-me a desenhar, afastei-me para olhar, apaguei e refiz o desenho, voltei a apagar uma parte, dei uns retoques finais — a parábola ficou impecável.

      - Muito bem! — comentou o professor, satisfeito. E adiantou: — Agora trace uma recta assim e assim...
    Tracei.
      - Agora faça isto...
    Fiz o que ele dizia.
      - E agora o que dá a intersecção desse sólido com a parábola?

    Olhei para o homem como boi para palácio. Não fazia a menor ideia do que me perguntava. Então o mestre voltou-se para mim como um pai compreensivo e, num tom completamente diferente do usado no dia anterior, disse-me:
      - Une aquele ponto com aquele, não é?

    Respondi que sim.
      - E agora o que faz?

    Eu voltava a não saber minimamente o que responder. Mas o professor ajudava:
      - Então, agora faz isto tal e tal, não é? E depois une aqueles dois pontos...

    Enfim, do princípio ao fim do exame ele disse-me tudo. Eu limitava-me a fazer no quadro o que o mestre ia dizendo, sem perceber sequer o que estava a fazer.

    No fim, quando veio a pauta, à frente do meu nome aparecia um luzidio 17! Aí tive a noção plena de como a vida é aleatória.

    (…)’

7 comentários :

ignatz disse...

um sobrinho aldrabão que não percebia nada de sombras e perspectivou uma hiperbole chamada sol em forma de ovo paranóico que teria sido um sucesso se o tio ainda fosse ministro. a falta que um pai fez a este co-adaptado do fascismo.

Anónimo disse...

E pelos vistos, ainda é aleatória....
Não é? Pequeno grande arquiteto...
Tu lá sabes...

Anónimo disse...

Porque é que no CC temos de gramar com merda desta, hã? Não há critérios higiénicos?...

Anónimo disse...

Muitos estão desejosos que este tempo volte... parece que já faltou mais!

Carlos Fonseca disse...

Reparem que o homem teve o bom senso de sacar o diploma, mas de não o usar, profissionalmente.

Assim, masturbando-se apenas com o que escreve, pode chatear uns ou fazer rir outros com as palermices que escreve. Mas ao menos não mata ninguém.

Já viram o que era este fulano a projectar edifícios?

Anónimo disse...

O proto-arquitecto era familiar de uma figura ministrial.
Se houve coisa que a vida não foi naquele dia foi aleatória.
Aparentemente até hoje o arquitecto continua a ser demasiado estupido para o perceber.

Morrer a aprender disse...



E nós temos agora a prova de que essa nódoa, com a idade que já deve ter, ainda não interiorizou correctamente as noções de "vida", de "noção plena" e, sobretudo, o significado do substantivo "aleatória"!

"Aleatória" é a última coisa que se poderia concluir da sorte que esse idiota chapado sempre deve ter tido em tudo na sua vida!

Embora duvide de que algum de nós a quisesse para si. Lá morrer, morreremos todos, sem dúvida, mas ao menos alguns de nós conseguirão não morrer ignorantes, como este pobre arquitonto...